quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Natal

24 de dezembro à noitinha, estação central Recife do pequenino sistema de metrô local. Linha Recife-Camaragibe. Sofreguidão de gente simples, lutando contra o relógio pra chegar em casa a tempo, pra ter direito a algo como uma noite de natal, presentes chineses nas sacolas. Vendedores esparsos tentam o mais discretamente possível vender pedrinhas de incenso para afastar os maus eflúvios, outros oferecem surrealisticamente pacotinhos de amendoim ao custo de um vale de transporte A, e aquela outra, de cara meio amarrada, oferece uns bonequinhos-chaveiro, bonequinhos de plástico caprichosamente vestidos com a indefectível roupinha vermelho e branca de Papai Noel. Na primeira estação do percuso o visível mal-estar da vendedora de bonequinhos aumenta. O mar de gente que acaba de embarcar a ignora completamente, mas ela insiste com sua vozinha monocórdia, seu cantochão de natal, a oferecer chaveirinhos de Papai Noel, dois por um real. Na estação seguinte por sorte vaga um lugar onde a vendedora dos chaveirinhos senta; bem a calhar, porque entraram os seguranças do metrô, e a dor aumentou, ela não iria mais se levantar nem oferecer os chaveirinhos até o destino final. Na estação Barro senta-se ao lado da vendedora um personagem um tanto peculiar, que eu já vi por estas bandas noutras vezes, nos últimos tempos. Ele aparenta cinquenta anos, veste-se como gente desleixada de trinta e carrega uma sacola às costas, sacola com a qual ele finge lidar com estudada indiferença (insegurança do Recife obriga), mas que qualquer um percebe conter algo que lhe é precioso. Eu os vejo um ao lado do outro, sentados numa véspera de Natal num ramal de metrô suburbano, e é como se estivesse diante da ilustração viva da solidão, do afastamento, do encapsulamento das grandes cidades. Eles jamais se encontrarão, apesar de que ele, com seu jeito de criança grande (provavelmente trata-se de um professor universitário), prescruta o vagão atentamente, como é seu hábito. Mas não enxerga a vendedora a seu lado, apesar de vê-la. Ela, por sua vez, já não enxerga mais ninguém, de tanta dor que sente. O único vínculo que os une é a urgência, a agonia de chegar em casa, a vontade de sair da transitoriedade precária de um vagão de metrô. Finalmente a estação Terminal Rodoviário; o professor, com sua mochila às costas e atrasado pela enésima vez, dispara rampa acima em direção ao guichê de vendas de passagens de seu ônibus. A vendedora caminha lentamente, chaveiros presos numa bolsa sambada, sacola de plástico azul noutra mão, e agora com a certeza que não chegará em casa a tempo. Não chegará em casa a tempo do seu arremedo de natal, não chegará em casa a tempo para alcançar o mercadinho aberto, não chegará em casa a tempo de pedir que alguém a ajude. Que a ajude a parir, porque chegou a hora. Eu, aqui do meu canto, fico pensando que se essa história tentava assumir ares de conto de natal, ficou mais parecida com um auto da paixão, com as estações do metrô fazendo as vezes de pontos de via sacra... E agora a vendedora num saguão de estação rodoviária que se esvazia velozmente, e a ponto de parir. Lugar mais infeliz para parir um filho, um saguão vazio de estação rodoviária em véspera de natal, sem ninguém a quem recorrer. Um lugar para onde ninguém vai, de onde ninguém vem: um lugar por onde se passa no rumo ou chegando de outros lugares. Mas pensando bem, foi tudo o que restou para o menino nascer numa véspera de natal: um não-lugar. Porque que outros lugares-lugares poderiam almejar recebê-lo?
Feliz natal a todos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Ensinar é a coisa mais bonita que tem!

Ao saber que meu destino era o campus universitário da UFPE, o motorista de taxi que me conduzia a partir do aeroporto dos Guararapes, em Recife, perguntou logo na manobra se eu era professor. Diante da resposta positiva, ficou em silêncio uns segundos, como quem toma coragem, e:
- O senhor pode me dizer o que significa a palavra “arauto”?
Virei consultor de palavras-cruzadas de taxista, pensei meio azedamente. Mas em seguida pensei também que essa devia ser uma função social minha, afinal sou servidor público, e:
- Arauto é uma espécie de mensageiro, alguém que leva e traz novidades.
- Ah!
(Silêncio)
- Tinha uma outra palavra que eu queria perguntar, mas não lembro não.
(Silêncio)
- O-RÁ-CU-LO! O senhor sabe o que é isso?
(Quantas palavras durará essa jornada ao longo da Avenida Recife?)
- Oráculo é, assim, alguém que desvenda sinais, alguém que vê indícios de acontecimentos que a maioria das pessoa não vê.
- Oráculo é isso?
- Se não me falha a memória, sim, mais ou menos isso...
- O senhor sabe se “arauto” vem do grego?
(!!!!)
- Eu não faço idéia, mas não parece grego... melhor consultar um dicionário...
(ao chegar em minha sala fui verificar, e constatei que efetivamente “arauto” vem do francês arcaico ou frâncico, hérault...)
- E qual é um dicionário bom?
- Todo mundo fala do Aurélio, não é? Tem o grandão e o pequeno, que é usado pelas crianças. Recomendo comprar o grandão.
(Silêncio)
- Eu estudei muito pouco na minha vida, mas agora voltei a ler. Quero ler dois livros por dia.
(!!!)
- Mas eu empanco nas palavras. Tem muitas palavras! Eu peço ajuda dos colegas mas é tudo mais “inguinorante”do que eu. Outro dia um deles quase dá em mim, porque eu disse que ele era um “indivíduo”. Ele ficou foi brabo! Agora me diga, qual o problema d’eu chamar ele de indivíduo? “Indivíduo” é aquele que não se divide, é aquele que é uma pessoa, certo?
- Certo...
- Então qual o problema? Ele gritava comigo que eu não chamasse ele de indivíduo, bicho mais inguinorante!
- Às vezes as palavras mudam de sentido, dependendo da situação...
- É?!!!
- Dizer que alguém é um monstro não é propriamente um elogio, mas se eu digo que João Paulo é um “monstro da política”, monstro aí tem outro sentido, não é?
- É...
(Silêncio)
- Eu queria aprender inglês. Tem uns colegas da cooperativa que estão aprendendo, pra atender os americanos. Mas eu não consigo entender nada da “voz”dos americanos! Outro dia um pegou meu taxi e pediu pra ir prum lugar que eu entendi “shopping center Recife”, e levei ele; mas ele queria ir pro “centro do Recife”. Quando eu deixei ele no shopping, ele ficou brabo, gritava, dizia “centro do Recife”, “centro do Recife”, tudo engrolado, mas era escritinho “shopping center Recife”!
- O senhor tenta aprender somente umas poucas frases, e aí vai treinando; quando aprender umas, parte pra outras, ou então fica no feijão-com-arroz mesmo.
- Eu acho que eu não aprendo mais não. É muito difícil! Eu queria aprender muita coisa, mas não cabe em minha cabeça. Queria ler dois livros por dia, mas não dá, tem palavras demais... E agora o senhor disse que ainda mais as palavras mudam...
(Pronto, eu já estava completamente engajado na conversa; poderíamos ter ido até Natal conversando, mas havíamos chegado ao campus da UFPE).
- Quem aprende, gasta tempo aprendendo, não desanime! Aprenda uma coisa todo dia, e o senhor vai ver como irá longe!
- O senhor se incomoda de escrever aqui nesse papelzinho o que o senhor disse de “arauto” e “oráculo”?
- Não, de jeito nenhum, me dê...
(...)
- Muito obrigado, o senhor ensina aqui?
- Já ensinei aqui durante muitos anos, agora ensino na universidade de Natal.
- Ensinar é a coisa mais bonita que tem!
- Obrigado!
- Eu é quem agradeço ao senhor!
- Coragem e progresso em suas leituras!
- Obrigado!
A narrativa acima é verídica, nos limites da dinâmica do conto e do reconto. Infelizmente não fiquei sabendo do nome desse taxista, nem disse a ele o meu. Em meio ao trânsito caótico, em meio à violência de Recife, descubro um taxista em busca de luzes; um taxista-leitor, empenhado de verdade em aprender, consciente do quão árdua é essa empreitada, mas comprometido pra valer com ela. Dedico a ele esse texto, na esperança de que, quem sabe, um dia ele o leia! E a ele, na sua condição pirandelliana de personagem em busca de um autor, agradeço por se deixar capturar para meu texto.

domingo, 9 de novembro de 2008

À guisa de abertura...

Esse espaço surge de minha necessidade de escrever, é simplesmente isso. Sinto-me, a essa altura da vida, como uma prostituta velha que apesar de ter sido forçada a fazer sexo profissionalmente a vida inteira, para sobreviver, ainda assim persiste amando e precisando fazer sexo: em minha vida, preciso escrever e publicar sistematicamente, sob pena de perecer (“publish or perish”), isso tem sido minha rotina e minha sina nos últimos vinte anos, e ainda assim escrever me traz um enorme prazer. Nada sei acerca do valor intrínseco desses escritos, desculpo-me diante dos incautos leitores a quem doravante os impingirei, leitores que em primeira instância fazem parte do meu rol de pessoas queridas e/ou conhecidas, ocupantes de minha agenda de endereços. Aqueles dentre estes que se sentirem incomodados, ou mesmo ofendidos diante dessa presunção, rogo se auto-excluirem da lista, sem com isso passarem a me querer mal... Aqueles que, por amizade, caridade, interesse real ou qualquer outra bem-vinda motivação permanecerem na lista de leitores, meu sincero agradecimento, porque os leitores internos a quem eu mostrava meus textos já haviam se cansado de dialogar comigo, é hora de ampliar!
Batizei esse blog com o pomposo título de “Espaço Dialógico Luigi Pirandello” por três razões: primeiro, por homenagem a um bar/galeria/restaurante ótimo que existiu na rua Augusta, em São Paulo, o Spazio Pirandello, onde a classe jornalística e teatral da cena consagrada e undi-grudi paulistanas, bichos-grilo em geral, performers, travecos dando um tempo, viajantes nordestinos de passagem, o espectro todo GLBTS, enfim, gente da melhor qualidade tomava todas noite a dentro, em busca de um sentido para vida e ouvidos tolerantes para idéias brilhantes em germe; segundo, porque ando encantado com essa coisa de dialogismo, na qual minha colega Selma Leitão vem me alfabetizando, e acho que esse será um espaço dialógico por excelência, se ao final tiver sido bom; e terceiro, porque esse espaço servirá para que eu finalmente solte no mundo toda uma multidão de personagens que venho aprisionando em minhas andanças, seja nos metrôs e busões recifenses, nas travessias Natal-Recife-Natal, seja numa platéia buliçosa de teatro esperando o início do espetáculo, seja lá onde for. Vejo o mundo como uma arena na qual circulam inúmeros personagens em busca de um autor; o mundo cada vez mais me aparece como um espaço em que sempre se improvisa, em que textos não-escritos (mas textos) emergem e são recitados, papéis são construídos e co-construídos, tudo conforme Luigi Pirandello, esse caçador de borboletas humanas, demonstrou genialmente tempos atrás. Assim me parece, e conforme me autoriza Pirandello, assim é!

Obamania

1.
Parece que o fato teria ocorrido durante o recente discurso da vitória de Barack Obama. Em determinado momento, o discursante gritou pra massa que era hora de todos “se levantarem pela América” (to stand up for America), ao que um dos presentes, paraplégico e cadeirante, retrucou da platéia que tudo bem quanto aos demais, mas ele lastimavelmente não poderia. A massa ao seu redor, diante de semelhante demonstração de pouca fé no momento histórico em curso, hurlou de volta para o homem um tonitruante “YES, WE CAN!!!”, ao que ele, face a tal movimento de fé e de massa (ou o inverso), levantou-se da cadeira e andou! Sim! Surgia assim o primeiro milagre da era Obama!
2.
Reunião do Conselho Deliberativo do Santa Cruz Futebol Clube, time de futebol (ou o que resta dele) da cidade do Recife. Homem de visão, proativo e resoluto, o presidente recém-eleito do Santa Cruz propõe a indicação de Barack Obama como conselheiro honorário, no bojo de uma série de medidas para trazer o time da quarta divisão (ou quinta, sexta, sei lá...) do futebol brasileiro para a primeira. Diante de um grupelho de conselheiros pouco convencidos que o time poderia fazer tal escalada, o presidente bradou um resoluto “SIM, COM BARACK NÓS PODEMOS”, e encerrou a questão. Mais um milagre no horizonte!
3.
Enquanto isso, nos cafundós do sertão nordestino, duas mocinhas retornam da cidade ao sítio onde moram, ao cair da noite. Numa encruzilhada de caminhos, surge diante das pobres indefesas a própria Besta Fera, montada numa Mula-Sem-Cabeça. A Besta Fera vocifera, jogando cuspe por entre os dentes podres, “Vocês não podem escapar, cabritas!!!”. Mas as cabritas (digo, mocinhas), diante de um tal perigo, retrucam para a Besta Fera “SIM, NÓS PODEMOS!”, e revirando os olhinhos para o alto, gritam a invocação “VALEI-ME BARACK OBAMA”, ao que Besta Fera e Mula-Sem-Cabeça explodem numa nuvem fétida de enxofre e fogo, e desaparecem sem deixar vestígios. Santinhos, ex-votos, quadros e invocações estarão proximamente à venda, as mocinhas informarão em breve, em site do orkut, como consegui-las via e-comércio.
4.
Leio e releio na imprensa mundial que a Casa Branca recebe “o primeiro presidente negro em sua história”. Ora, isso me causa uma certa estupefação. No meu parco entendimento e discernimento, esse primeiro presidente, que dizem ser negro, ao que me consta é... moreno! Nós brasileiros, povo mestiço e refinado, sabemos distinguir matizes de cor de pele, assim como os esquimós, habituados à neve, têm não sei quantos termos para o que nós outros chamamos genericamente de “branco”. Nós, modestamente, entendemos de mulatos(as). Oras, se o cara é filho de mãe 100% branca, e pai 100% negro (apesar de não ser baiano), então dizê-lo “negro” seria tão abusivo quanto dizê-lo “branco”, pois o cara é café-com-leite, moreno, mulato, queimado do sol, enfim, qualquer um desses termos aí, mas negro? Ele próprio confessou que o cachorro que vai dar à filha será vira-lata, “like me”. Vejam então que ele próprio sabe de sua mestiçagem! Talvez então a primeira grande reforma na alma norte-americana, a ser operada por Obama, comece pela flexibilização mental que distinga matizes lá onde o senso comum histórico desse povo se habituou a impor dicotomias simplórias. Viva, então, o primeiro presidente moreno a ocupar a Casa Branca! E que, além de moreno, não entrará em cabine telefônica antes de assumir o cargo presidencial, convém se acostumar com a idéia...