sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Carta-aberta ao senador Jarbas Vasconcelos

Senador,

Eu, e muitos de minha geração, depositamos nosso primeiro voto para deputado no senhor e em companheiros seus do velho MDB, como Marcus Cunha e Cristina Tavares. Meus familiares na época vociferavam contra essa “turma”, bando de comunistas, o pior deles sendo o “tal Jarbas”, que inclusive havia “comprovadamente” batido no próprio pai, e por aí ia. Nessa mesma época me enchi de orgulho e alegria, “sem ódio e sem medo” gastando a gasolina de minha moto na campanha de Marcos Freire para senador, bons tempos aqueles! Mas o máximo, o clímax, e talvez a despedida desse tempo de ingenuidade e alegria, foi o retorno de Doutor Arraes a Recife; pelas ruas de Casa Amarela e Caixa d´Água, Santo Amaro, Brasilia Teimosa, Encruzilhada e Afogados, bradávamos triunfantes que ele iria voltar pela porta pela qual havia saído, naquele fatídico fusquinha, tão espremido no banco trazeiro, tão pouco espaço para tamanha personagem da história de Pernambuco e do Brasil. As voltas que o mundo dá: em pleno ano da graça de 2010, encontro em grupamento de pesquisa parisiense um ex-piloto de aviação que, sabendo de minha origem brasileira, me pergunta se eu havia conhecido um politico brasileiro de nome Miguel Arraes, que havia sido exilado político na Argélia e depois em Paris. Ora se conheço!!! – respondi. Pois bem, continuou ele entre divertido e triunfante, o senhor sabe quem foi o piloto francês que pilotou o avião que o conduziu, junto com familiares, em sua viagem de retorno da França ao Brasil? (!!!) O senhor?!? Me dê cá um abraço! (tratava-se do ex-piloto de aviação comercial Michel Jouanneaux).

Pois é, as voltas que o mundo dá: hoje, senador, já não voto mais no senhor, hoje sou eleitor de Eduardo Campos, a quem darei meu voto pela segunda vez no domingo três de outubro que já apita no horizonte. Voto em Eduardo Campos, diga-se, não porque ele me cooptou ou comprou meu voto: nunca pedi a ele nada além de compromisso pelo nosso estado, dele nunca recebi nada além da satisfação de acompanhar à distância a qualidade de seu governo. Quis as voltas e redemoinhos da vida que eu deixasse Pernambuco por outro estado nordestino, mas para o próximo três de outubro eu e a família vamos pra estrada, de volta à terra, para dar nosso voto e nosso endosso à continuidade do trabalho de Eduardo.

Ao que parece, o senhor perderá essa eleição. Quero contudo lhe dizer que apesar de todo o chão que batemos até hoje, do MDB ao PMDB, o senhor, como personagem da política, e eu como eleitor, e apesar do fato de que hoje nos encontramos em campos diversos do embate político, tenho pelo senhor consideração e respeito. Em nenhum momento me arrependo daquele meu primeiro voto no senhor, porque tinha e tenho a convicção que dei meu voto a um homem corajoso, lutador de um bom combate. Na sequência dos tempos heróicos da “abertura lenta e gradual”, da anistia e da redemocratização, nunca deixei de registrar sua pernambucanidade, sua gana em defesa de nosso estado, desde o apreço pela cozinha da terra até as brigas de cachorro grande em Brasília. Nesse contexto, o dia quatro de outubro, senador, tem uma significação importante na construção de sua biografia de político pernambucano: apelo ao senhor para que, a partir desse dia, reoriente seu esforço e sua gana em prol de nosso estado. Não lhe peço adesão ao governo de Eduardo porque isso seria impossível e não-cabível por uma série de razões, a primeira das quais o senhor ser Jarbas Vasconcelos, todas as demais sendo pouco relevantes diante dessa. O que lhe peço é grandeza. Nobreza. Pernambucanidade. Não resvale para o vão do ressentimento, venha ocupar o lugar que de direito lhe cabe na história desse estado, e de quebra na minha pequena e humilde história de eleitor pernambucano.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Em honra a Ossip e Nadejda Mandelstam

Tendo-me privado dos mares e do élan das asas / Soterrando meus pés em terra violenta/ O que obtiveram de mim? /Lamentável plano! /Vocês não conseguiram me privar desses lábios que murmuram. (Mandelstam)

O poeta russo Ossip Mandelstam morreu de frio e de fome em 27 de dezembro de 1938, aos 46 anos de idade, em trânsito de um campo de concentração para outro, na região de Vladivostok, antiga URSS. Foi preso pelo crime de “composição e difusão de obras-contra-revolucionárias”, entre as quais o poema abaixo, publicado em 1934 e dedicado corajosamente ao camarada Stalin, num tempo em que muitos desapareciam, eram perseguidos, calados à força, violentados até a morte por muito menos do que se segue:

"Vivemos sem sentir..."
Vivemos sem sentir a Rússia embaixo,
não se ouvem nossas vozes a dez passos.

Mas onde houver meia conversa – sempre
se há de lembrar o montanhês do Kremlin.

Seus grossos dedos são vermes obesos;
e as palavras – precisas como pesos.

Sorri – largos bigodes de barata;
e as longas botas brilham engraxadas.

Rodeiam-no cascudos mandachuvas;
seu jogo: os meio-homens que subjuga.

Um assobia, um rosna, um outro mia,
só ele é quem açoita, quem atiça.

E prega-lhes decretos-ferraduras
na testa ou no olho, na virilha ou nuca.

Degusta execuções como quem prova
uma framboesa, o osseta de amplo tórax.
(“Stalin”, Mandelstam, 1934; tradução de Boris Schnaiderman a partir do russo).

Mas antes que os tempos difíceis da treva stalinista tivessem caído sobre a inteligência soviética de então, as coisas haviam sido luminosas, o espírito de 1917 parecia prometer tempos que então se anunciavam, no dizer de N.Berdiaeff, como a “idade de prata” da cultura russa. Ossip e Nadejda recebiam para o chá poetas como Maiakovski e Khlebnikov, e mesmo jovens teóricos do fazer literário, como um certo Lev Vygotski, descrito por Nadejda como “um tanto formal, como de hábito nessa gente das universidades, mas boa gente...” (Nadejda Mandelstam, Contre tout espoir: souvenirs. Paris, Galimard, 1970). Ossip Mendesltam, nessa época e segundo a descrição de seu amigo Maiakovski, “ flutuava pelas ruas com pequenos ramalhetes de muguet na lapela, distribuindo fulgores de consciência no ritmo sincopado do passar dos dias, um poeta-criança”, numa miséria material digna e nobre, e com um bom-humor que se voltava até para suas desditas, e que perdurou mesmo quando chegaram “(...) tempos apocalípticos em que a infelicidade e o sofrimento seguiam nossas pegadas” (Mandelstam). Quandos esses tempos se instalaram de vez e Ossip Mandelstam foi levado preso, e todos os seus livros confiscados e/ou destruídos, Nadejda Mandelstam dedicou-se à tarefa solitária, heróica e amorosa de memorizar todos os seus poemas, os quais reescreveu e republicou anos depois da morte do companheiro. Pelos seus-dela-lábios de Nadejda, Ossip mostrou ao establishment ditatorial stalinista que afinal um tão temível aparato de canhões-botas-fuzis-poder “(...) não conseguiram me privar desses lábios que murmuram”. “Se eles matam os poetas, é porque respeitam a poesia”, escreveu profeticamente Mandelstam. Sim, porque se os poetas são passíveis da anulação da morte, a Poesia, esta, se espraia pelo grande simpósio universal da caminhada humana, e não se submete mais ao esforço vão dos que perseguem os rastros palpáveis do falado, do escrito, do esculpido, do sonorizado, de tudo enfim que se concretiza como produto da Arte, uma dentre tantas alternativas do Intangível. Afinal, em paráfrase a outro poeta (um brasileiro, Mário Quintana), os fuzis e botas passarão, enquanto que a poesia, passarinho!




sábado, 23 de janeiro de 2010

Minha França

(... eu, personagem de mim mesmo _ 1)

Éramos entre oito e dez garotos ruidosos, naquele distante primeiro ano ginasial de um colégio masculino; a nos unir, como um atributo tribal, a condição de “time de francês”, pronto, naquela quadra esportiva mambembe de um estacionamento interno com piso de paralelepípedos, para um embate futebolístico de 30 minutos contra o “time de inglês”. O colégio estabelecia como norma para os recém-entrados no primeiro ano a escolha do idioma que seria estudado pelos quatro anos do ciclo ginasial de estudos, o que gerava um ritual de fila de hospital público na manhã-madrugada do dia marcado para o comparecimento dos pais: os que chegassem primeiro tinham o direito de escolher, os que chegassem depois apenas pegavam as vagas restantes, e as primeiras escolhas recaíam majoritariamente sobre a língua inglesa, a língua francesa já em plena derrocada e desprestígio num mundo fortemente americanófilo. Eu, do alto de minha soberba adolescente (e bota soberba nisso, só que iria piorar), avisei à minha mãe que nem se estressasse em acordar de madrugada e ir disputar lugar na fila dos optantes, porque não havia perigo nesse mundo de minha austera pessoa gastar suas energias mentais aprendendo como língua estrangeira os bramidos bárbaros da língua inglesa: eu iria estudar francês, e ponto final (duas décadas depois não só estudei como tornei-me professor de inglês, numa clara demonstração de que língua não tem osso, notadamente língua adolescente peremptória). Minha mãe tinha como política não desperdiçar energia psíquica com embates menores, pois o inimigo era duro e extenuante, e assim reservar o melhor de si para os combates cruciais (algumas vezes coadjuvados por sua temível chinela voadora, que me atingia certeiramente mesmo quando eu tentava esc apar em alta velocidade). E após dois segundos de avaliação balançou a cabeça meio indiferente, num ar de “sua alma, sua palma”. E assim se fez, passei a fazer parte da banda “gauche” da turma, os “meninos do francês”, como nos apelidavam nossos “chefes de disciplina”, bedéis incumbidos de nos dar limites. Os “meninos do inglês” eram claramente de outra subcultura: pragmáticos, sistematicamente mais belos e bem-recebidos entre as meninas, praticamente todos, mais adiante, optantes por carreiras acadêmico-profissionais de prestígio: engenharias, medicina, direito; os “meninos do francês”, por sua vez, eram apegados à literatura e à filosofia, fundavam e dirigiam jornais escolares como o “Zeros à Esquerda”, e mais tarde optaram majoritariamente por carreiras de baixa remuneração e discutível prestígio social, como Letras, Filosofia, História, Psicologia, por aí. Na quadra de futebol das pausas do recreio confrontávamos nossas diferentes visões-de-mundo, olho no olho, pé na canela, jogos de vida ou morte dos quais saíamos semi-destruídos para a segunda parte da manhã de aulas.
As aulas de francês eram dadas no colégio por professores da Aliança Francesa de Recife, e de fato eram aulas de “langue et civilisation française”, com forte ênfase na parte do marketing do aporte civilizatório trazido pelos franceses para este mundo, desde Astérix. Aprendemos sobre vinhos, sobre queijos (“pode-se comer um tipo de queijo diferente a cada dia durante um ano!”), sobre a revolução francesa (construímos nossa própria guilhotina pedagógica e executamos alguns ratos de laboratório acusados de girondinos traidores), líamos Tintin e Astérix em exemplares originais sebentos emprestados pela Aliança, acompanhamos em tempo real (da época), mesmo sem entender grande coisa, os acontecimentos de Maio de 68 em Paris. Mais tarde, graças à inspiração de uma professora cuja competência no domínio da língua francesa se equiparava à pujança e beleza de suas (dela) pernas, começamos a nos interessar pela lingerie francesa, mas esse é um hiperlink no qual não clicaremos agora.
O fato é que, para aquele grupinho de quinze fedelhos, a experiência linguístico-cultural de imersão na língua e civilização francesas durante os quatro anos de ginásio e mais três de científico constituiu um pequeno ethos cultural que nos especificou e nos uniu. Anos mais tarde, os quatro anos de vida na França, para o doutorado na Sorbonne, trouxeram para o imaginário o arremate do cotidiano, com suas agruras e seus prazeres. Foi aí que, acho, a França definitivamente tornou-se Minha França. Um espaço de referências e significações que não se confunde com meu país, pois sou indelevelmente nordestino-brasileiro, é esse o meu eixo, sou um devorador de carne de bode. Mas ao mesmo tempo um espaço que não pode ser assimilado à condição genérica de “estrangeiro”, porque a França definitivamente não é parte do estrangeiro para mim. Trata-se portanto de Minha França, “douce France, cher pays de mon enfance”, lugar que me alimenta, me reconstitui, me inspira e me desafia, para onde retorno daqui a pouco para mais uma temporada de convívio, Dieu merci!