sábado, 23 de janeiro de 2010

Minha França

(... eu, personagem de mim mesmo _ 1)

Éramos entre oito e dez garotos ruidosos, naquele distante primeiro ano ginasial de um colégio masculino; a nos unir, como um atributo tribal, a condição de “time de francês”, pronto, naquela quadra esportiva mambembe de um estacionamento interno com piso de paralelepípedos, para um embate futebolístico de 30 minutos contra o “time de inglês”. O colégio estabelecia como norma para os recém-entrados no primeiro ano a escolha do idioma que seria estudado pelos quatro anos do ciclo ginasial de estudos, o que gerava um ritual de fila de hospital público na manhã-madrugada do dia marcado para o comparecimento dos pais: os que chegassem primeiro tinham o direito de escolher, os que chegassem depois apenas pegavam as vagas restantes, e as primeiras escolhas recaíam majoritariamente sobre a língua inglesa, a língua francesa já em plena derrocada e desprestígio num mundo fortemente americanófilo. Eu, do alto de minha soberba adolescente (e bota soberba nisso, só que iria piorar), avisei à minha mãe que nem se estressasse em acordar de madrugada e ir disputar lugar na fila dos optantes, porque não havia perigo nesse mundo de minha austera pessoa gastar suas energias mentais aprendendo como língua estrangeira os bramidos bárbaros da língua inglesa: eu iria estudar francês, e ponto final (duas décadas depois não só estudei como tornei-me professor de inglês, numa clara demonstração de que língua não tem osso, notadamente língua adolescente peremptória). Minha mãe tinha como política não desperdiçar energia psíquica com embates menores, pois o inimigo era duro e extenuante, e assim reservar o melhor de si para os combates cruciais (algumas vezes coadjuvados por sua temível chinela voadora, que me atingia certeiramente mesmo quando eu tentava esc apar em alta velocidade). E após dois segundos de avaliação balançou a cabeça meio indiferente, num ar de “sua alma, sua palma”. E assim se fez, passei a fazer parte da banda “gauche” da turma, os “meninos do francês”, como nos apelidavam nossos “chefes de disciplina”, bedéis incumbidos de nos dar limites. Os “meninos do inglês” eram claramente de outra subcultura: pragmáticos, sistematicamente mais belos e bem-recebidos entre as meninas, praticamente todos, mais adiante, optantes por carreiras acadêmico-profissionais de prestígio: engenharias, medicina, direito; os “meninos do francês”, por sua vez, eram apegados à literatura e à filosofia, fundavam e dirigiam jornais escolares como o “Zeros à Esquerda”, e mais tarde optaram majoritariamente por carreiras de baixa remuneração e discutível prestígio social, como Letras, Filosofia, História, Psicologia, por aí. Na quadra de futebol das pausas do recreio confrontávamos nossas diferentes visões-de-mundo, olho no olho, pé na canela, jogos de vida ou morte dos quais saíamos semi-destruídos para a segunda parte da manhã de aulas.
As aulas de francês eram dadas no colégio por professores da Aliança Francesa de Recife, e de fato eram aulas de “langue et civilisation française”, com forte ênfase na parte do marketing do aporte civilizatório trazido pelos franceses para este mundo, desde Astérix. Aprendemos sobre vinhos, sobre queijos (“pode-se comer um tipo de queijo diferente a cada dia durante um ano!”), sobre a revolução francesa (construímos nossa própria guilhotina pedagógica e executamos alguns ratos de laboratório acusados de girondinos traidores), líamos Tintin e Astérix em exemplares originais sebentos emprestados pela Aliança, acompanhamos em tempo real (da época), mesmo sem entender grande coisa, os acontecimentos de Maio de 68 em Paris. Mais tarde, graças à inspiração de uma professora cuja competência no domínio da língua francesa se equiparava à pujança e beleza de suas (dela) pernas, começamos a nos interessar pela lingerie francesa, mas esse é um hiperlink no qual não clicaremos agora.
O fato é que, para aquele grupinho de quinze fedelhos, a experiência linguístico-cultural de imersão na língua e civilização francesas durante os quatro anos de ginásio e mais três de científico constituiu um pequeno ethos cultural que nos especificou e nos uniu. Anos mais tarde, os quatro anos de vida na França, para o doutorado na Sorbonne, trouxeram para o imaginário o arremate do cotidiano, com suas agruras e seus prazeres. Foi aí que, acho, a França definitivamente tornou-se Minha França. Um espaço de referências e significações que não se confunde com meu país, pois sou indelevelmente nordestino-brasileiro, é esse o meu eixo, sou um devorador de carne de bode. Mas ao mesmo tempo um espaço que não pode ser assimilado à condição genérica de “estrangeiro”, porque a França definitivamente não é parte do estrangeiro para mim. Trata-se portanto de Minha França, “douce France, cher pays de mon enfance”, lugar que me alimenta, me reconstitui, me inspira e me desafia, para onde retorno daqui a pouco para mais uma temporada de convívio, Dieu merci!