quinta-feira, 8 de julho de 2010

Em honra a Ossip e Nadejda Mandelstam

Tendo-me privado dos mares e do élan das asas / Soterrando meus pés em terra violenta/ O que obtiveram de mim? /Lamentável plano! /Vocês não conseguiram me privar desses lábios que murmuram. (Mandelstam)

O poeta russo Ossip Mandelstam morreu de frio e de fome em 27 de dezembro de 1938, aos 46 anos de idade, em trânsito de um campo de concentração para outro, na região de Vladivostok, antiga URSS. Foi preso pelo crime de “composição e difusão de obras-contra-revolucionárias”, entre as quais o poema abaixo, publicado em 1934 e dedicado corajosamente ao camarada Stalin, num tempo em que muitos desapareciam, eram perseguidos, calados à força, violentados até a morte por muito menos do que se segue:

"Vivemos sem sentir..."
Vivemos sem sentir a Rússia embaixo,
não se ouvem nossas vozes a dez passos.

Mas onde houver meia conversa – sempre
se há de lembrar o montanhês do Kremlin.

Seus grossos dedos são vermes obesos;
e as palavras – precisas como pesos.

Sorri – largos bigodes de barata;
e as longas botas brilham engraxadas.

Rodeiam-no cascudos mandachuvas;
seu jogo: os meio-homens que subjuga.

Um assobia, um rosna, um outro mia,
só ele é quem açoita, quem atiça.

E prega-lhes decretos-ferraduras
na testa ou no olho, na virilha ou nuca.

Degusta execuções como quem prova
uma framboesa, o osseta de amplo tórax.
(“Stalin”, Mandelstam, 1934; tradução de Boris Schnaiderman a partir do russo).

Mas antes que os tempos difíceis da treva stalinista tivessem caído sobre a inteligência soviética de então, as coisas haviam sido luminosas, o espírito de 1917 parecia prometer tempos que então se anunciavam, no dizer de N.Berdiaeff, como a “idade de prata” da cultura russa. Ossip e Nadejda recebiam para o chá poetas como Maiakovski e Khlebnikov, e mesmo jovens teóricos do fazer literário, como um certo Lev Vygotski, descrito por Nadejda como “um tanto formal, como de hábito nessa gente das universidades, mas boa gente...” (Nadejda Mandelstam, Contre tout espoir: souvenirs. Paris, Galimard, 1970). Ossip Mendesltam, nessa época e segundo a descrição de seu amigo Maiakovski, “ flutuava pelas ruas com pequenos ramalhetes de muguet na lapela, distribuindo fulgores de consciência no ritmo sincopado do passar dos dias, um poeta-criança”, numa miséria material digna e nobre, e com um bom-humor que se voltava até para suas desditas, e que perdurou mesmo quando chegaram “(...) tempos apocalípticos em que a infelicidade e o sofrimento seguiam nossas pegadas” (Mandelstam). Quandos esses tempos se instalaram de vez e Ossip Mandelstam foi levado preso, e todos os seus livros confiscados e/ou destruídos, Nadejda Mandelstam dedicou-se à tarefa solitária, heróica e amorosa de memorizar todos os seus poemas, os quais reescreveu e republicou anos depois da morte do companheiro. Pelos seus-dela-lábios de Nadejda, Ossip mostrou ao establishment ditatorial stalinista que afinal um tão temível aparato de canhões-botas-fuzis-poder “(...) não conseguiram me privar desses lábios que murmuram”. “Se eles matam os poetas, é porque respeitam a poesia”, escreveu profeticamente Mandelstam. Sim, porque se os poetas são passíveis da anulação da morte, a Poesia, esta, se espraia pelo grande simpósio universal da caminhada humana, e não se submete mais ao esforço vão dos que perseguem os rastros palpáveis do falado, do escrito, do esculpido, do sonorizado, de tudo enfim que se concretiza como produto da Arte, uma dentre tantas alternativas do Intangível. Afinal, em paráfrase a outro poeta (um brasileiro, Mário Quintana), os fuzis e botas passarão, enquanto que a poesia, passarinho!