quarta-feira, 9 de julho de 2014

Vive-se, em alemão, uma forma superior de vida?


Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
 

No day after do desastre de nossa seleção de futebol no Mineirão, que agora ocupa lugar histórico ao lado do desastre no Maracanã na Copa do Mundo de 1950, um dos piores subprodutos é o retorno de nosso demônio cultural de estimação – o demônio que remonta ao momento exato em que europeus puseram os pés nessas terras e inauguraram a confrontação entre autóctones e reinóis. Esse demônio nos tem tentado há 500 anos a achar que a felicidade, o progresso e, em última análise, a civilização estão sistematicamente alhures, a depender do europeu-invasor de ocasião:  Portugal, França, Inglaterra, Holanda. Neste último caso – o dos holandeses -  bem familiar a nós pernambucanos, muitas vozes da historiografia local insistem em registrar que o vilarejo de Nova Amsterdã fundado em terras norte-americanas pelos holandeses expulsos de terras pernambucanas em 1648, daria origem anos depois a... New York. Se Nova Amsterdã gerou New York, Mauritsstadt (depois Recife) teria gerado algo parecido, caso os holandeses tivessem ficado... E por aí vai, com exemplos do pós-guerra baseados em leituras pouco rigorosas da imigração japonesa e européia para o Brasil, conducentes à representação social renitente de uma cultura brasileira irremediavelmente periférica e incompetente, magistralmente denominada de “complexo de vira-lata” por Nelson Rodrigues.

O tal complexo de vira-lata voltou com força com o 7 x 1 que a seleção alemã de futebol nos impingiu em nossa terra, nossa copa, nossa festa, sob nossas ventas. A supremacia futebolística teria sido apenas consequência natural de supremacia cultural: lá onde improvisamos, eles planejam; onde tergiversamos, eles focam; onde enrolamos, eles treinam. O massacre do Mineirão metaforizou certa soberania que habita o subconsciente histórico-cultural brasileiro desde que os Tupinambás provaram carne européia e a acharam de qualidade superior.

O problema não está em constatar que os alemães efetivamente treinaram há mais tempo e mais eficazmente que os brasileiros, e que eles jogaram melhor futebol que os brasileiros: o escorregão fatal, muitas vezes não confessado ou não-consciente, está em achar que eles treinaram melhor porque são alemães, e portanto ganharam por serem alemães. A questão não é ganhar porque treina, é treinar porque é alemão, e portanto finda ganhando. Eis, inteiro, nosso demônio.

Advogar que somos intrinsecamente ótimos e recusar as lições dessa tragédia do Mineirão  (que nos acompanhará durante décadas, haja vista a vivacidade de 1950 no imaginário nacional até hoje) é de fato manifestação da outra face de nosso demônio nacional: no fundo estamos condenados a essa condição subalterna e amadora, vamos tirar proveito (canções ao invés de filosofia) e superfaturar os episódios triunfantes aqui e ali, que afinal não são poucos: somos pentacampeões, oras!

O caminho da evolução da cultura e civilização brasileiras passa pela superação da ideia segundo a qual trabalhamos mal por conta de nossa condição intrínseca de vira-latas brasileiros. Trabalhamos mal por uma série de razões que cumpre trabalhosamente apurar. E como trabalhamos mal! Em tantos e inúmeros domínios! Por outro lado, não é condição do bom trabalho a pantomima do pó-de-arroz branqueador sobre nossa natureza morena, não é finalmente a condição de boneco de ventríloquo no colo de europeu que nos viabilizará.

Voltando ao domínio do futebol, que ensejou esta reflexão – como ficamos? Qual a lição? A lição é que origem nacional-cultural nos apetrecha com um conjunto de características que, em si e por si, não nos levam a nada: nem para o bem, nem para o mal, nem para o bom, nem para o ruim. Apenas nos dão identidade, história, filiação, afinidades. O que cada um, cada grupo, cada período histórico vai fazer com sua herança identitária é sempre tarefa em aberto, sujeita ao sucesso e ao fracasso. Nesse contexto, está esgotada a idéia de que “nascemos com futebol no sangue”, o que nos habilita ao sucesso: os alemães trituraram esse mito. Nosso jeito de tratar a bola, que efetivamente existe, não o fim, é somente o começo: tal como os alemães trabalharam eficazmente o jeito germânico deles tratarem a bola, cabe-nos fazer o mesmo tanto com nosso jeito brasileiro de jogar. Acredito piamente e ardentemente que nosso jeito é melhor e mais bonito, porque afinal, não sou uma partícula achadora desconectada da história e da cultura: sou brasileiro! Mas agradeço de coração aos alemães por terem mostrado com tanta eficácia que a brasilidade, ou qualquer outra condição, não garantem o paraíso.

Não perdemos por que somos brasileiros vira-latas, assim como eles não ganharam por serem pastores-alemães. Não se vive, em alemão, uma forma superior de vida: vive-se apenas uma forma de vida tão boa quanto si própria.
Encontro marcado para a disputa da inédita medalha de ouro olímpica de futebol, em terras brasileiras em 2016: vamos fazer valer a força da cultura brasileira de forma semelhante àquela através da qual os alemães fizeram valer a força da cultura germânica: pelo trabalho. E que vença o mais competente.