sexta-feira, 30 de outubro de 2015

APRENDIZAGENS: em honra aos 60 anos do Instituto Capibaribe


O que pretendo trazer aqui à consideração de vocês, nessa mesa, resulta da conversa interna entre um conceito central em minha vida de pesquisador que pensa e pesquisa sobre aprendizagem, o conceito vygotskiano de vivência, tradução dificultosa do termo russo perezhvanie,  e tudo que pude aprender sobre aprender, no tempo do Instituto Capibaribe. São vivências que quero compartilhar aqui, com vocês. Continuo uma conversa que iniciei já há 10 anos atrás, quando da edição do livro comemorativo dos 50 anos do IC, para o qual tive a honra de contribuir com depoimento escrito. Essa conversa interna me constituiu e constitui todo o tempo, e foi em função dessa conversa que dediquei meu trabalho inicial de tese, em meu Diploma de Estudos Aprofundados, na Universidade de Paris 5, a Raquel Correa de Crasto. Meu orientador, à época, perguntou, curioso quem era aquela pessoa; eu respondi, misterioso, que havia sido uma antecessora dele... Ele até hoje deve imaginar trata-se de alguma acadêmica brasileira, em algum mestrado prévio... Mal sabia que a dimensão dessa antecessora havia sido muitíssimo maior! A lembrança e homenagem a Dona Raquel não havia sido por acaso; ao iniciar o doutorado, me senti perigosamente ameaçado por um contexto que não conhecia, uma língua que não era a minha, um desafio que parecia enorme; naquela ocasião, mesmo as máquinas de lavar roupa de aluguel, na residência universitária onde residi na chegada, pareciam dispositivos inextricáveis e complicadíssimos, que me faziam pensar, desolado: “alguém que não consegue sequer lavar as próprias roupas sujas numa porcaria de uma máquina de lavar, como poderá fazer um doutorado, ainda mais em língua francesa?” Vivência que já era minha conhecida:  anos atrás, na chegada ao Capibaribe, vindo de experiência escolar absolutamente desastrosa, analfabeto quando todos já haviam aprendido a ler, estrangeiro num mundo adulto distante, marginal num mundo infantil hostil, aquela escola da Avenida Malaquias parecia mais uma comarca inatingível de um país de frustração e desamparo que se constituía para mim. Na chegada à Sorbonne, uma secretária cinza me havia advertido que, naquela universidade, não se faziam favores a estrangeiros;  na chegada ao IC,  os coleguinhas me saudaram com a advertência de que naquela escola todos deveriam fazer primeira comunhão, mas analfabetos estavam fora – destinados ao inferno por conta de sua incompetência ignara e pecadora.  Em Paris, logo após o choque das primeiras experiências assustadoras, uma voz tranquila enraizada em vivências do passado sussurrou ao meu ouvido que o desafio, ali, como das outras vezes, seria sobretudo encontrar o meu próprio caminho para aquela trilha: nem se submeter aos projetos de outros, nem sucumbir ao vazio do vácuo de qualquer projeto.  Como na Avenida Malaquias, onde a Dona da Voz sussurrou ao meu ouvido o convite inesperado para acompanhá-la na preparação do jornalzinho da escola – jornalzinho que tinha um patrono - São Domingos Sávio (discípulo de São João Bosco) – sobre quem, um dia, eu poderia ler, quando pudesse ler, e se quisesse saber; enquanto isso, iríamos produzir textos escritos... em deliciosos mimeógrafos a álcool. Assim se iniciou minha trajetória de apego ao texto escrito no Instituto Capibaribe: da forma como pude iniciá-la, como auxiliar de produção de texto mimeografado cujo significado cifrado desconhecia, mas em meio à magia de se apaixonar por um jornalzinho escolar mesmo antes de entender uma mísera linha do que ali se escrevia. Em Paris, exatos 365 dias após a chegada assustadora, texto de exame pronto, caminho pessoal iniciado, dedicatória a Raquel inserida, voltei aos 365 dias após a chegada ao IC, então na condição de diretor de edição do jornalzinho, e sob a proteção de Domingos Sávio e de Dona Raquel. O quão bem produzia e consumia texto, não sabia e hoje não me recordo: tudo que recordo foi o quanto foi tardio – último dos meninos de minha turma a se alfabetizar, ritmo próprio nesse processo, analfabeto inclusive durante a primeira comunhão – Dona Raquel me havia tranquilizado, rindo à solta da tentativa de bullying dos coleguinhas que me haviam garantido que o padre iria me pedir para abrir o missal à página x, e ler o que estava lá – se não lesse, nada de óstia e nem de primeira comunhão! Conforme Dona Raquel havia assegurado, todos comungaram, apesar de só um menino magrinho, dentre todos, ter comungado feliz, e analfabeto. A defesa do texto de exame em Paris, que os coleguinhas haviam preconizado como de difícil sucesso mesmo para os nativos  - melhor pedir logo para fazer o exame ao final do segundo ano – me parecia possível, porque havia aprendido antes que um caminho era sempre possível de trilhar quando o caminho era o seu; e que aquela óstia de primeira comunhão doutoral estaria sim a meu alcance, primeiro porque eu a queria muito, e segundo porque eu iria encarar aquela empreitada do meu jeito, e sob a égide de Domingos Sávio e Raquel. Meu privilégio...
Vivência, para Lev Vygotski, diz respeito à experiência acumulada do vivido, peculiar a cada um e necessariamente atravessada por acervo de emoções e afetos. Vivência, para mim, é a unidade de análise da psicologia, qualquer que seja o adjetivo que a acompanha: do desenvolvimento, do trabalho, da aprendizagem. Vivência diz respeito à integração biográfica entre passado, presente e futuro, e à integração entre racionalidade e afetividade. Aprender é fundamental, mas aprender, como vivência, traz sempre em si, embutida, a meta-experiência de aprender a aprender. Tal experiência tem como cerne a competência, discutida pelo Círculo Bakhtin em termos de estilização, no sentido de construir um caminho próprio. Aprendi com Raquel o apego afetuoso ao texto escrito através do enfeitiçamento da pequena oficina na labuta do mimeógrafo a álcool – em meio à tranquilidade, ao respeito, ao carinho por um garotinho desvalido e em risco – fora dos padrões, mas pronto a se apegar – à escola, ao aprender, ao assumir o direito de fazer valer sua diferença, viver com ela, e não apesar dela. Vygotski, ao refletir sobre crianças diferentes, ou “feitas de outra maneira” – portanto caracterizadas por um defectus – donde a Defectologia russa, chama a atenção para o fato de que elas são crianças tão humanas quanto qualquer outra, apesar de portarem peculiaridades como poucas, e olhando de perto, como nenhuma outra. Raquel sabia “querer bem a todos, querendo o bem de todos”(pg. 25 dos Cinquenta Anos Depois), e sobretudo “respeitar o estilo e o arranjo pessoal” (pg. 27), convicta da importância dessa postura para formar pessoas integrais, ao invés de formatar ovelhas – eventualmente enviando-as direto para o abatedouro. Escrevi em meu texto de 2005 que o Capibaribe sempre soube acolher patinhos feios, e não necessariamente para transformá-los em cisnes (apesar de alguns, efetivamente, terem desenvolvido belas plumagens), mas para oferecer a cada um deles um laguinho onde fosse possível nadar, onde fosse possível se afeiçoar a nadar: eis aí o cerne das vivências de quem passou por essa escola tão pequena em valor material, tão especial na escala inefável que avalia as vivências.
Sempre me assombrou, pela vida afora, a constatação retrospectiva de uma certa familiaridade vivencial de Dona Raquel, com construtos teóricos do estado da arte da teorização em psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, minha área de formação doutoral. De Jean Piaget a Emilia Ferreiro, passando por Anita Paes Barreto e Paulo Freire, de Lev Vygotski a Jerome Bruner, passando por Mikhail Bakhtin e seu círculo de colaboradores. Mais de uma vez conversei sobre esse meu assombro com o prof Paulo Rosas, um dos meus formadores na Psicologia UFPE, a quem aproveito para igualmente reverenciar aqui. Recentemente, em evento acadêmico em Paris, um dos conferencistas, Pablo Del Rio,  disse uma frase que imediatamente me trouxe Dona Raquel; ele disse: “há pessoas que falam como livros, há livros que falam como pessoas, e há pessoas que trazem a sabedoria dos livros em seu discurso e em sua prática profissional, mesmo que não citem os livros, e mesmo que, misteriosamente, nem sequer os tenham lido.” Lembraram de alguém?
Para além da ênfase absolutamente contemporânea na integração dos aspectos cognitivos e afetivos nos contextos de ensino e aprendizagem (tema aliás de uma fala que ofereci ao professorado do Instituto Capibaribe em 2004, a convite da direção pedagógica), numa época em que muitas correntes de peso da psicologia e da pedagogia tratavam esses aspectos como separáveis, e da ênfase no respeito às peculiaridades dos alunos, não para lhes conceder privilégios especiais na comunidade-escola, mas lhes respeitar direitos inalienáveis, Dona Raquel trouxe igualmente contribuições específicas na lide com os conteúdos escolares específicos – isso com que até hoje lutamos, ao propor, primeiro, os Parâmetros Curriculares Nacionais, e agora a Base Nacional Comum Curricular. O que digo sobre isso, digo não com base na leitura de textos de orientação de Raquel, apesar de ter visitado os bastidores desse mundo em que fui aluno, ao ler as anotações do 50 Anos Depois... Digo com base, mais uma vez, na vivência de quem passou quase um ano sacrificando os domingos de praia para ir à casa humilde e acolhedora de Dona Raquel, no bairro de Campo Grande, para aulas suplementares de Português e Matemática, em preparação para um futuro chamado Ginásio de Aplicação (mais histórias, mais vivências...). Mais uma vez, como tantas vezes, a avaliação pessoal era de completa impotência para conseguir acesso àquele colégio de nerds – logo eu, até bom em Português, mas definitivamente problemático no domínio das Matemáticas – como ter essa pretensão? Raquel acolheu essa postura com um ponche de laranja – lembram que em nossa infância tomávamos ponche? Ponche de laranja com bolacha cream-cracker – o lanche que acompanhou, em sua simplicidade franciscana, todo aquele período de formação suplementar. Ponche e aquele jeito Raquel de ser – la force tranquille, como diriam os franceses. Aquela certeza de que, mais uma vez, haveríamos de construir um caminho, o meu caminho. Certa vez, numa das jornadas dominicais de Campo Grande, diante de uma expressão numérica aterradora (chamávamos de “carroção”), com barra fracionária, parênteses, chaves e colchetes e tudo o mais que se pudesse imaginar, e que eu deveria simplificar, olhei desamparado para Dona Raquel, e aí ela me segredou uma fórmula que me acompanhou muitos anos depois, em minhas pesquisas já no domínio da resolução de problemas e da passagem da aritmética à álgebra: “esses problemas são como papa, a gente começa comendo pelas bordas...” Mais tarde ouvi o russo naturalizado americano George Polya discorrer em “How to Solve It” sobre a sofisticação da estratégia do “means and ends analysis” , que vem a ser justamente comer um problema complexo (matemático, econômico, existencial...) pelas bordas – o que tem a estratégica característica de não garantir que o problema seja resolvido de uma tacada – ele lhe leva a um problema cada vez menor, somente isso; e de menor em menor, ele fica do meu tamanho – Eureka!
O que cada aluno dessa escola toda vida lembrará, com base nas vivências fundadoras de cada um no Instituto Capibaribe, é que aprender é bom, é prazeroso e é autoral; aprender é trazer para si e reinventar, aprender é receber os tesouros dos que nos precederam, e dar a esses tesouros o valor adicional do estilo pessoal; valor adicional que não tem necessariamente medida clara e objetiva, na direção do desempenho, do achievement tão caro a certas perspectivas anglófonas de educação; já na condição de pai de aluno do IC, quantas e quantas vezes ouvi em nossas reuniões de pais e mestres a pergunta angustiada de outros pais: “aqui nessa escola meu filho até está indo até bem, ele gosta da escola e tudo, mas ele vai conseguir se dar bem lá fora, noutras escolas, quando sair daqui? Ele estará equipado para a  vida real, fora desse jardim protegido?” O IC gerou um paradigma em Recife, e mesmo fora de Recife: meus filhos pequenos frequentam em Natal, onde hoje residimos, uma escola que é a “cara” do IC, e que atende pelo sugestivo nome de “Casa Escola” – sentiram o clima? Pois muito bem, a pergunta permanece, tantos anos depois... Os pais vêem os filhos felizes na escola, lembram do tanto de porrada que levaram em suas experiências escolares, e se perguntam, fiéis à tradição judaico-cristã de progresso via penitência: “é possível atingir o bom desempenho sem sofrência escolar? ”  Eu, do meu canto, pela enésima vez respondo que basta dar uma olhadinha nos egressos... Sem grandes circunlóquios sobre o valor da perspectiva construtivista, etc e tal. Olhem os egressos...
O que os egressos do Instituto Capibaribe, hoje com filhos, netos, bisnetos, e vamos que vamos, o que esses egressos toda vida lembrarão é de uma etapa da vida em que se consolidaram como pessoas. Aqueles dentre os egressos que se encaminharam para as lides pedagógicas levarão um acervo de vivências focadas no rigor, na seriedade profissional do ser mestre, no estudo constante, no carinho imenso ao ofício e ao educando. E mesmo aqueles que, mais prosaicamente, admitam não ter histórias muito especiais a contar, esses também se juntarão a todos os demais, posto que todos têm seu lugar nessa foto, todos tiveram o privilégio de compartilhar a vivência de uma escola que para sempre em nossas almas ficará.
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ADENDO acrescentado após ver o vídeo produzido para a apresentação, como parte do programa, na emocionante cerimônia do Teatro Beberibe, em que uma das depoentes, ex-aluna do IC, lembrava um dos motes da escola: “Aqui a gente pode tudo...”. Isso me trouxe mais uma vivência, que compartilho abaixo.
Clinica Pinel, véspera de Natal de 1980. Eu no plantão, co-responsável pela Unidade Freud de mais ou menos 50 pacientes do sexo masculino,  a maior parte psicóticos, e com baixa dosagem média de medicação, como era a tradição na clínica. Por volta das 21hs sou chamado à unidade, um paciente que me ver.
Eu: Olá, gostaria de falar comigo?
Ele: Sim, gostaria. Aqui nessa clínica vocês dizem que a gente tem ampla liberdade, mas a gente não pode nada.
Eu: E o que você gostaria muito nesse momento?
Ele: O que gostaria muito, nem vou falar, pois sei que não haveria a menor possibilidade de ser atendido. Vou falar somente o que gostaria, assim, de boa.
Eu: Diga!
Ele: Gostaria de que hoje a regra do silêncio das 22hs fosse suspensa, e que a gente tivesse direito a um recital de música sacra com o primeiro violino da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.
Eu: Vamos consultar os demais pacientes – se eles concordarem, eu vou autorizar. Quanto ao recital... Como fazer para conseguir o violinista?
Ele: Fácil, sou eu.
Eu: [pensamento paralelo: acionar princípio técnico de como lidar com delírios; não escarnecer, não confrontar – aceitar sem se associar ao delírio, etc...] – Vamos ver... Primeiro vamos tratar da aceitação de sua proposta pelos demais pacientes... [Ganhar tempo...]
20 minutos depois, pacientes todos de acordo, volto à unidade para tratar do encaminhamento da produção delirante, e ao comunicar ao meu interlocutor que a primeira parte da demanda estava contemplada, ele vai a seu armário, retira um violino, senta-se com todos os pacientes ao redor, e inicia uma belíssima sonata de Natal, em meio a muita emoção. Nem precisei conferir depois (mas confesso que o fiz) que ele era, efetivamente, o primeiro-violino da Sinfônica de Porto Alegre.
Ao final da noitada, todos se recolhendo, ele me diz: O senhor sabe, nessa vida, em canto nenhum a gente pode tudo; mas a gente pode muito quando há boa vontade e boa conversa!
Era sempre assim no Instituto Capibaribe: a gente de fato não podia tudo, mas a gente conversava tudo e sempre - e findava podendo muito!

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Redução da maioridade penal: acerca do castigo como vingança


A questão da redução da maioridade penal é um desses casos exemplares e históricos da sinergia perniciosa entre ignorância e preconceito. Alguns aspectos precisam ser minimamente considerados no trato dessa questão.
Para começo de conversa, é preciso admitir que as condições de aprisionamento de qualquer animal não-humano em zoológicos, biotérios e assemelhados são, no Brasil, infinitamente melhores que as condições de aprisionamento no sistema brasileiro de prisões. Desde que passei a participar, como pesquisador, do Observatório Nacional do Sistema Prisional (https://www.ufmg.br/ead/onasp/index.html ), não paro de me estarrecer com o que fazemos com a população carcerária deste país - a terceira maior do mundo, em números absolutos ( cf. http://tinyurl.com/p354nar ). Os pouquíssimos dados de confiança de que dispomos apontam que a "ressocialização"/ "recuperação" dos detentos egressos dessas masmorras é pífio. Mas desconfio que isso não é fundamental para nossa sociedade, pois de fato o que se deseja ao internar um preso é fundamentalmente sua punição, mesmo sua trituração como ser humano. A prisão é o lugar da vingança social - Lei de Talião com juros. Não serão poucos aqueles que, ao ler estas mal-traçadas, reagirão à la Malafaia com interpelações do tipo "quero ver quando matarem um filho seu e o arrastarem pelo asfalto se você manterá essa conversinha de bom-moço". A questão não passa pela negação da dor alucinante do pai ou mãe que passa por uma tragédia dessas. A questão é que o desejo de vingança em relação ao agente do crime hediondo não bate com as diretrizes histórico-institucionais no Brasil e em muitos países ocidentais, para os quais quem comete delito e é considerado culpado incorre em pena, que tem a dupla função de punição social e recuperação: em tese, quem cumpriu pena deveria poder voltar ao convívio social plenamente re-habilitado em sua cidadania. Em tese, quem comete delito não deixa de ser gente (teses devidamente dissecadas criticamente por Michel Foucault, em "Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão"  - disponível em http://tinyurl.com/o7wp8ej ). No Brasil (e vamos ficar no Brasil), o sistema prisional, como sistema, não recupera ninguém - ele mói carne e provê vingança social, alimenta o crime organizado (nas prisões e fora delas), nada mais do que isso. Esse texto poderia terminar aqui, como peça argumentativa contrária à redução da maioridade penal. Mas poderia avançar mais um pouco, no terreno especulativo do "e se o sistema prisional fosse adequado" - o que remete à questão associada de "alguém de 16 anos sabe o que faz - tanto é que vota para presidente da república, etc.". Três questões para pensar, aqui: 1. O binômio histórico da reparação do crime e da oferta de condições de ressocialização ao delinquente continua de pé? Ou o simples fato de que muitos delinquentes brasileiros não são sequer socializados (então como poderiam ser "re" socializados?) invalidaria essa premissa? 2. Se consideramos como incontornável (e TODOS consideramos) a existência de um sistema social de justiça para lidar com delitos, esse sistema deveria ser necessariamente fundado no cerceamento da liberdade - na pena de aprisionamento? (Sugestão de leitura aqui: Sobre a reabilitação de criminosos: há alternativa... à pena? Márcia Miranda, Editora Letra Capital). 3. Se considerarmos que um indivíduo de 16, 15, 14 ou até 12 anos de idade tem condições sócio-cognitivas de lidar com a noção de regra, delito e castigo, a punição adequada em caso de delito cometido por parte desses jovens deveria ser a restrição de liberdade - seja ela em padrão carcerário usual ou com adaptações-atenuantes (como "cela especial", "cela em instituição especial", etc)?
Alguns elementos de resposta às indagações acima: o sistema prisional brasileiro, como bem reconheceu meses atrás o ministro da justiça José  Eduardo Cardozo ("Se fosse para cumprir muitos anos na prisão, em alguns dos nossos presídios, eu preferiria morrer" – cf. http://tinyurl.com/aafv5pd ), não é presentemente lugar para recuperar ninguém; por esse aspecto, rebaixar a maioridade penal para enviar detentos jovens a partir dos 16 anos para essas jaulas funciona fundamentalmente como vingança social – inclusive e muito especialmente para os chamados crimes hediondos. Vamos combinar isso. Se é de vingança que se trata, então que se diga isso com todas as letras, e vamos lá. Mas SE estivéssemos no mundo virtual de um sistema prisional minimamente decente, e fundado na pena do cerceamento de liberdade, ainda assim o envio de jovens para o aprisionamento não seria o caminho mais adequado para lidar com o delito e com o delinquente. E isso seria tão mais pertinente quanto pertinente é pensar que essa constatação não é válida somente para os jovens: é válida para qualquer delinquente, tenha ele a idade que tiver. E aqui chegamos ao ponto central nessa discussão: a prisão, enquanto pena de restrição da liberdade em cárcere, deveria ser prevista como UMA opção no  bojo do sistema de justiça, e não como A opção dominante e modal, em detrimento de outras alternativas eventualmente previstas nos códigos penais – como é o caso do nosso. Isso é válido para quaisquer delitos, e para delinquentes em qualquer faixa etária. A forma de lidar com um jovem de 16 anos que mata um médico respeitado e produtivo, que passeia em sua bicicleta pelas margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, para roubar-lhe a bicicleta e o tênis, é uma questão de sociedade inescapável (haverá ainda muitos e muitos outros médicos a chorar, infelizmente).  Pelo que tenho conseguido ler até aqui em psicologia, educação e domínios afins, não há resposta fácil e pronta para essa questão – com ressalva da minha própria ignorância. Mas de um ponto estou certo e convicto: NÃO é pelo rebaixamento da maioridade penal, inculpação e aprisionamento que se vai lidar com esse delito e com esse delinquente – não como forma efetiva de punir e recuperar.
Olhando diretamente em seus olhos: caso você seja desses que decididamente não contém a revolta em relação a determinados delitos e delinquentes (o que é compreensível, psicologicamente), sejam eles maiores ou menores de idade, assuma de uma vez sua recomendação de pena capital para esses delitos, ao invés da proposta de aniquilamento paulatino da dignidade desses delinquentes nas jaulas do sistema prisional brasileiro (exceto algumas Papudas aqui e ali, cujos detentos “ordinários” serão sempre gratos ao companheiro José Dirceu).
Para além do fuzilamento dos delinquentes – institucional ou não  (providência corrente nas periferias desse país), e do encarceramento (seja ele em condições humanas ou sub-humanas), cabe-nos exercitar o esforço e a responsabilidade social de construir alternativas que respeitem a juventude e a cidadania brasileiras, e preservem o que nos resta de ideal civilizatório de sociedade. Que o Congresso Nacional se incorpore a esse esforço, ao invés de cerrar fileiras com o atraso, o preconceito, a preguiça mental e a barbárie.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Carta aberta à Presidenta Dilma Rousseff


Senhora presidenta, quem lhe fala e de onde lhe fala? Sou um docente do ensino superior e gestor público, nordestino, sem filiação partidária mas (me avalio como) situado à esquerda no espectro político-ideológico, e seu eleitor na ultima eleição presidencial. Isso deve bastar para minimamente contextualizar minha mensagem - e mensagens têm sempre um conteúdo explicito e um contexto de enquadre, sem o que não se pode minimamente lidar com elas.
A senhora vive hoje um momento delicado dessa sua segunda gestão (da qual sou fiador, junto com os demais brasileiros que a elegeram), e no meu entendimento a crise atual tem três frentes, que cabe à senhora atacar, e já.  A senhora se comprometeu com uma gestão de esquerda fundada no ideário do PT, fundada em sua biografia pessoal (largamente explorada na campanha), e compromissada com ênfases de gestão decorrentes dos dois pilares básicos acima citados - a transparência e moralidade no trato com a coisa publica (também largamente explorada na campanha) e a defesa intransigente dos avanços que a gestão PT acumulou anteriormente no domínio da inclusão social e aperfeiçoamento das condições de cidadania do povo como um todo, mas muito especialmente da parcela mais desvalida desse povo. A senhora se comprometeu, presidenta, com um governo de esquerda, e foi na consideração desse compromisso que lhe demos credito e em função dele a elegemos.
Todos nós, brasileiros de boa fé, queremos lutar em prol de uma economia sólida para esse pais, mas a construção de uma economia sólida não tem na abordagem liberal conservadora sua única alternativa. O chamado Custo Brasil não tem nos salários, na promoção e gestão da saúde publica e da educação e no dispêndio com pesquisa, inovação e reorganização do Estado seus principais vilões. A ênfase no setor produtivo nacional, com revisão dos critérios de concessão de incentivos na direção do compromisso com a nação, em detrimento do acordinho paroquial de ocasião, tem peso muito mais estruturante do que o apagar de incêndio do aumento dos juros (que freiam as cegas consumo e produção - notadamente da microempresa). Uma política clara de gestão da matriz energética do pais é outro ponto fundamental, que dê sentido as acorres do agora, para lidar com a crise aguda da escassez de agua e dos apagões, e a ações do depois, rumo a um patamar mais adequado para a gestão do nosso perfil (invejável) de recursos energéticos. Finalmente, cabe mencionar a gestão do problema estrutural representado pela corrupção, filha de uma política menor, de uma estrutura partidária mal-ajambrada e vocacionada para a mediocridade e para a contravenção, e da falta de coragem e vontade politica que uma gestão de esquerda (a sua!) em tese estaria comprometida a rever.
Não nasci ontem, presidenta,  e sei que no mundo real de uma democracia republicana representativa os acordos políticos devem ser feitos, mas também sei que a cúpula da gestão publica brasileira tem historicamente tratado a reforma política com dubiedade, hipocrisia e irresponsabilidade; no calor do movimento das ruas em Junho de 2013, assim como na última campanha, até plebiscito se prometeu para o trato desse tema estruturador - de novo escorregando para a vala dos assuntos importantes mas não urgentes.
A senhora preside uma nação e tem vinculo com um partido, mas veja bem, a ordem de prioridade é essa, sugerida pela construção da frase. O Estado não pertence ao PT, e nem a nenhum outro partido-aliado de ocasião. Ou bem se restabelece a confiança do grosso dos cidadãos (a começar pelos seus eleitores, mas não somente eles) na gestão publica, ou a senhora vai perder o jogo - e junto com a senhora, outros entes nobres irão igualmente para o buraco, como por exemplo a própria noção de gestão da coisa publica. Falemos então diretamente do tópico do momento: a Petrobras e as denuncias de corrupção recentes e a ela ligadas. A melhoria da governança da Petrobras não está necessariamente ligada a perda do voto maioritário do Estado, representado pelo governo vigente. A Petrobras é uma empresa de um tal valor estratégico que deve persistir ligada, majoritariamente, ao Estado Brasileiro. Mas isso não quer dizer que a Petrobras pertença ao partido ou aliança de partidos do governo no poder! A proteção da empresa, para o bem do Brasil, passa por uma melhor delimitação do setor técnico e da pesquisa e prospecção, pelo setor da gestão de negócios (a Petrobras tem ações nos mercados de valores do mundo afora), e pela responsabilidade social e politica da empresa na estruturação do Brasil (vide discussão dos royalties a serem pagos aos estados produtores de petróleo da federação, bem como destinação político-administrativa dos royalties do Pre-Sal). A organização atual da Petrobras é ruim, e tem papel importante na explicação da eclosão dos escândalos atuais, sem desconsideração dos deslizes éticos e falta de vergonha na cara de uns e de outros - cuja devida nomeação, espera-se, prossiga de forma célere, eficaz, completa e inexorável. A reorganização da govenança da Petrobras pode e deve ser feita à esquerda, presidenta, e de forma eficaz do ponto de vista meramente financeiro-administrativo. É um mito a combater essa tese de que onde há ideário de esquerda, há junto a ineficácia de gestão; o ideário de esquerda tem relação com os compromissos de destinação dos lucros da empresa, e não com sua dilapidação; quebrar a Petrobras é crime de lesa-pátria, mantê-la forte é obrigação técnica e política de seus gestores - obrigação para com os acionistas minoritários, e assim como para o acionista maioritário, que é o Estado brasileiro. Por fim, a Petrobras é somente um "case" dentre tantos outros (gestão da matriz energética e politica de estado para a gestão do PIB, por exemplo). Cabe aqui e em qualquer caso ter em mente que a ênfase não é a manutenção de estruturas partidárias de poder (o que é relevante, mas não pode ser o dado primário), e sim o compromisso com a nação brasileira enquadrado por uma visão de mundo de esquerda.
Presidenta, mais vale perder o jogo lutando uma boa luta do que perdê-lo nas cordas, apenas adiando, golpe após golpe, o nocaute final. Não a elegemos para a gestão apaga-incêndios na pequenez do dia-a-dia, na conformidade com esse status quo medíocre, na zona cinza de atitudes e decisões em que qualquer visibilidade do ideário de esquerda some completamente. Honre seus compromissos de base e conte conosco - aqueles que lhe deram crédito e a elegeram. Persista nessa posição defensiva e pequena e se prepare para a solidão - eu, pelo menos, não estarei a seu lado simplesmente por conta de carteirinhas de partido - repito o que disse no inicio, essas carteirinhas, eu não as tenho e provavelmente jamais as terei. Não lhe dirijo o dedo acusador de "estelionato eleitoral", como os eleitores do candidato perdedor não param de vociferar sempre que podem e por qualquer meio. Dirijo-lhe o apelo -  enquanto é tempo - no sentido de que não perca de vista seu compromisso com uma gestão eficaz, corajosa, competente e de esquerda. Não deixe que se registre, em sua biografia, o ônus da indecisão (que sua campanha tão brutalmente denunciou na candidata Marina Silva), da pouca nitidez de critérios além dos conselhos de seu travesseiro; a senhora NÃO está sozinha, a não ser que decida por isso. Evite o pior tipo de arrependimento - aquele, mencionado pelos poetas e cancioneiros, referente ao que NÃO se fez.
Senhora presidenta faca valer seu epíteto de campanha (junto com todo o resto), seja valente, vire à esquerda, mostre garra e serviço, e conte comigo!
Seu eleitor, a seu lado,
Jorge Falcão

domingo, 11 de janeiro de 2015

Ser ou Não Ser Charlie: Qual a Questão?


“O terrorismo é duplamente obscurantista: primeiro no atentado, depois nas reações que desencadeia.”
(Antônio Prata, “Terrrorismo Lógico” , coluna publicada na Folha de São Paulo de domingo, 11/01/2015)

Após o primeiro momento de perplexidade com a barbárie cometida contra os jornalistas do Charlie Hebdo, que gerou uma onda de “Je suis Charlie” mundo afora, começaram a surgir algumas reflexões na grande imprensa e redes sociais, no sentido de “Eu não sou Charlie”. Ora, pelo menos três questões estão juntas e misturadas nesse debate: a liberdade de expressão, a “avaliação” da qualidade da produção do Charlie Hebdo, e a assim chamada islamofobia. Antes de entrar no vivo do sujeito, permita-me o leitor uma reminiscência que me assaltou nas últimas horas.
Primeira metade da década de 70 do século passado, eis-me moleque ginasiano e “diretor-geral” do jornal do Colégio de Aplicação, que tinha o titulo de “Zeros à Esquerda”, e como epíteto fiel ao titulo, “um jornaleco pouco relevante”. Nosso lema era aceitar absolutamente toda e qualquer contribuição, desde que respeitasse as normas básicas da língua portuguesa e algumas outras normas internas, referentes a nosso “controle de qualidade” e à nossa sobrevida como periódico (e à sobrevida funcional – ou outra - de nossos professores): lembremos que estávamos em plenos anos de chumbo da ditadura pós-golpe de 1964. Nossos professores tinham conosco uma postura absolutamente exemplar, do ponto de vista de nossa formação: cabia exclusivamente a nós aceitar ou recusar qualquer matéria para publicar, após refletir sobre os ônus e ganhos de uma ou outra decisão. Pois muito bem: nesse contexto, eis que um grupo de alunos do colégio, de formação e origem confessional protestante, resolvem instaurar o que denominaram de “cultinho”, uma reunião de vários dentre eles, nas pausas das aulas, para rezarem juntos, entoarem salmos, e por aí ia; havia um “líder”, aprendiz de pastor, que conduzia tais prédicas. A “inteligentsia” do colégio, concentrada no comitê editorial sob minha coordenação, reagiu pessimamente a essa iniciativa, com propostas terroristas de invadir e esculhambar exemplarmente uma das sessões do tal cultinho; alegavam que aquilo era um atraso, uma agressão ao clima intelectual elevadíssimo e laico (apesar de que tínhamos aulas de religião nos sábados pela manhã...) da escola; felizmente tal proposta (meu primeiro encontro com a postura violenta que os mais esclarecidos e bem-nascidos podem demonstrar)  não prosperou, mas aí os inimigos da prática e do proselitismo protestante resolveram, mais civilizadamente, propor uma matéria ao ‘Zeros à Esquerda”, em que esculhambavam, de A a Z, tudo que dizia respeito a religiões, religiosidade, o grupo de alunos em si, enfim, não ficava pedra sobre pedra. O “Zeros” tinha circulação mais ou menos semanal, impresso em stêncil a óleo (para nosso orgulho!), e nas sextas-feiras divulgávamos, no mural do Clube de Imprensa da escola, as matérias listadas para publicação, durante a semana seguinte. Uma vez sabedores da tal matéria, o grupo protestante imediatamente se mobilizou junto à diretora da escola (não me deram trela como editor), exigindo que a tal matéria fosse vetada. Diga-se: naquela época, censura a material escrito era uma coisa absolutamente natural, legal e legítima: o Index Librorum Prohibitorum, da Igreja Católica, ainda vigente, informava que os textos de um tal de Sigmund Freud programados para as aulas de filosofia estavam proscritos como livros que os católicos NÃO deviam ler (líamos alegremente, claro). Proibir uma materiazinha considerada ofensiva em jornaleco de escola poderia até ser visto como ato pedagógico. A diretora, porém, mulher de valor e coragem (lembrem-se da época!), informou aos alunos demandantes de censura (já devidamente escoltados e pilotados pelos pais) que a decisão final caberia a mim, o editor-geral. Que eles apresentassem a mim sua demanda e respeitassem meu encaminhamento. Ela finalizou o papo  considerando que a função da direção era fornecer o papel e a tinta, não selecionar as matérias. Foram a mim, então. E eu, por trás dos meus óculos e de minha magreza adolescente, informei que o máximo que poderia fazer era abrir espaço para uma resposta já no mesmo número, ou no número seguinte, como quisessem. Os coleguinhas esbravejaram, ameaçaram, e no final informaram que não iam publicar porcaria nenhuma num jornaleco de m(*) daqueles, mas que não iam agüentar calados. O jornal saiu, com a matéria devidamente publicada e procura recorde pelos poucos exemplares que tirávamos, e no editorial eu informei que alunos do grupo mencionado na matéria haviam recebido convite para a devida réplica, mas haviam “declinado”de fazê-lo (pense num editor elegante!). O tópico freqüentou aulas de Organização Social e Política do Brasil (OSPB – os cinqüentões vão lembrar...), Educação Moral e Cívica, reunião de pais, o escambau a quatro, e depois de certo remu-ménage, tudo arrefeceu, o cultinho por alguma outra razão foi interrompido, e o próprio Zeros não resistiu à pressão da nossa preparação do exame vestibular, e virou somente uma reminiscência gostosa para aqueles dentre nós, alunos daquela geração, às voltas com a gestão da informação e da opinião. Aprendi desse episódio central em minha gestão de editor que o atributo mais valioso e sagrado de um órgão de imprensa é o direito e a responsabilidade de decidir, por si mesmo, o que vai publicar, o que vai vetar. Não propriamente a possibilidade de publicar tudo e qualquer coisa, mas o livre arbítrio.  Diga-se para fechar a sessão nostalgia: não foram poucas as matérias que recusei (até por considerá-las mal-escritas, irrelevantes, desinformadas – os autores ficavam umas feras!).
De volta ao presente: a liberdade de expressão, na base constitucional da liberdade de imprensa em muitos países republicanos e democráticos, como é o caso da França, mas também do Brasil, continua aqui e ali sendo acossada por grupos de pressão, como meus coleguinhas fizeram em priscas eras, para “regular”, de fora para dentro, o que o jornal vai publicar. O rol de justificativas é imenso, indo desde razões de estado, passando pelo respeito devido a grupos específicos, e chegando, como na atualidade, à questão da sacralidade intocável de certos preceitos. Louvo o Charlie Hebdo, e SOU Charlie, porque o jornaleco JAMAIS cedeu a essas pressões, ponto final. Quem se sentiu destratado, ofendido ou coisa assim teve espaço na imprensa livre para reagir, e as barras dos tribunais para argüir eventual desrespeito a lei (como dizia minha diretora no Ginásio, nós decidimos livremente o que publicar, e assumimos as responsabilidades). Mas a NINGUÉM o Charlie deu o privilégio de calá-lo, e ele NUNCA se calou; pagou caro por isso, mas nunca se calou. Quarta-feira próxima, conforme postei numa de minhas mensagens em rede social, um doutorando meu em Paris vai comprar pra mim um exemplar do Charlie pós-massacre (em tiragem recorde de 1 milhão de exemplares!), não porque sou fã e adoro o Charlie: nos quatro anos em que morei na França, ele nunca foi minha praia, raramente o comprei, leitor fiel que sempre fui do Libé.  Vamos então deixar bem claro o seguinte: SER Charlie, na atual conjuntura, não quer absolutamente dizer que, do dia pra noite, todos passamos a adorar, curtir e ler com sofreguidão o Charlie; O Charlie é  o Charlie, o buraco é mais embaixo! Que isso fique claro, oras! Tariq Ali, escritor paquistanês radicado no Reino Unido, teve a infelicidade de, a esse respeito, escrever o seguinte: “Defender o direito de publicarem o que quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa, mas sacralizarem um jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já são vitimas de uma islamofobia desenfreada nos EUA e na Europoa é quase tão tolo quanto  justificar os atos de terror contra a publicação” (“Guerra entre Fundamentalismos”, Tarik Ali, Folha de São Paulo de domingo, 11/01/2015, seção “Tendências/Debates”). Pelas barbas do Profeta, se um membro da inteligentsia arabo-islâmica enxerga nas charges do Charlie um ataque (nos moldes da extrema direita) ao povo e a cada muçulmano, ao invés de um ataque a uma manifestação de fundamentalismo, o que esperar dos jovens suburbanos que foram recrutados para fuzilar os jornalistas?
Voltemos então ao hit do momento, o duo “sacralidade”de certos princípios e “islamofobia galopante” da qual o Charlie seria vetor  (aí muita gente boa diz: “Pois é, criticamos radicalmente os assassinatos cometidos, isso é inaceitável, MAS o jornal, DE CERTA FORMA, fez por onde merecer, ao desrespeitar princípios sagrados de uma religião e de um povo”). Concordo que há, na Europa de hoje, e muito particularmente na França, representação social bastante rebaixada do elemento arabo-muçulmano. Para muitos, os jovens nascidos na França de pais imigrantes de origem árabe seriam cidadãos de segunda (ou terceira) categoria. Essa não é uma constatação sem fundamento, há vários indicadores nessa direção (eu mesmo teria algumas histórias para contar, apesar de brasileiro, mas suspeitamente moreno -  igual a um magrebino, ou iraniano). Ligar o Charlie, contudo, à islamofobia, é um ato de singeleza intelectual, para não falar coisa pior. E isso independentemente do fato que o árabe-muçulmano médio possa se sentir humilhado, enraivecido, desrespeitado por determinadas charges que foram publicadas. Entendamos o seguinte: as charges não se destinaram a desqualificar Said ou Muhamad, e sim desafiar um establishment ideológico-religioso que, entre outras coisas, se dá o direito de proclamar sentenças de morte (chatwas) como a que foi proclamada contra Salman Rushdie, anos atrás, por ter ousado escrever os “Versos Satânicos”; fundamentalismo que decepa cabeças de repórteres em redes sociais; fundamentalismo que fuzila jornalistas aos gritos de “Deus é grande”; fundamentalismo que elege premissas oriundas de crenças religiosas como preeminentes sobre determinados valores republicanos – e por aí estão dados os elementos para um choque real de perspectivas culturais. Não obstante, isso não dá razão à extrema-direita em seu discurso xenófobo de “guerra ao islamismo”: a guerra se estende a toda e qualquer postura que eleja como fundamentos princípios outros que não a liberdade, a igualdade e a fraternidade  de 1789 – o que, diga-se, abarca o fundamentalismo de direita, o xiitismo de extrema esquerda, as agressões sionistas, e por aí vai. Se houvesse, em Paris, um posto de atendimento aos descontentes com o Charlie Hebdo, para distribuir fichas que desse ao portador o direito de um tiro ou uma bomba na sede do jornal, os rolos de fichas teriam de ser repostos todo dia... O serviço que o Charlie tem prestado aos Muhamads e Saids, assim como aos jovens neo-nazistas da extrema direita xenófoba e (esta sim!) islamofóbica, é a chance de saírem da zona de conforto e pensarem. Pensar! Ô que coisa difícil e perigosa! Como bem escreveu Hélio Schwartsman, “(...) para funcionar plenamente, a democracia exige algum nível de insulto”.
Enfin, bref: SOU e CONTINUO SENDO CHARLIE (e triste por não ter podido bater asfalto na Place de la Republique, hoje à tarde, onde Paris se manifestou em defesa da liberdade de expressão) não porque passei, do dia pra noite, a avaliar  Charlie como o suprasumo da imprensa nanica satírico-crítica: sou Charlie porque o Charlie, hoje, é o símbolo da liberdade agredida, mas em processo político de recuperação. Sou Charlie não porque considero que os franceses de origem muçulmana são os inimigos a abater – mesmo que eles se materializem na tela de minha TV como soldados do terror; se cada um dos 8 milhões de franco-muçulmanos resolvesse detonar a França, não iria ficar pedra sobre pedra. Sou Charlie porque Charlie representa uma imprensa arisca, incômoda, desconfortável (acrescente aqui seus adjetivos), que sempre representou uma garantia republicana, na prática, de que o ódio não pode ser eregido à condição da sacralidade, e ponto final – doa isso à direita, à esquerda, aos muslins, aos cardeais, aos rabinos ultraconservadores, ao policial torturador da esquina, a quem se eregir em esbilro do totalitarismo que, de cima pra baixo e de fora para dentro, lhe diz o que pensar, o que decidir, como agir. É disso, e por isso, que se nutre minha convicção de SER CHARLIE.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

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Creio ter sido o filósofo Jürgen Habermas quem escreveu em um de seus textos que a base da civilização é a argumentação: a capacidade de defender uma perspectiva, suportar perspectiva contrária atacando-a com a palavra (e não a tiros), e tendo a honestidade intelectual de, no caso de contra-argumentação eficaz, mudar o próprio ponto de vista (no todo ou em parte). A Democracia, forma de governo baseada na discussão prévia de idéias e posterior tomada de decisão coletiva fundada na perspectiva majoritária, tem no Parlamento (que evoca em sua etimologia os termos “parler”, “parlare” – falar) seu cenário, arena, sacrário. Em suma, a civilização repousa sobre o embate de idéias, respeitando-se politicamente a opinião da maioria, e preservando-se o direito de expressar qualquer opinião, e lutar por ela, mesmo na condição de minoritário. A barbárie, por outro lado, consiste na defesa de uma perspectiva através da ação de calar o adversário – seja através da regra censória, seja através da morte, via tacape, fogueiras em praça pública (onde são queimados obras, autores ou ambos), ou tiros de Kalachnikov. O  mais triste e grave do modus operandi bárbaro consiste no fato de que, efetivamente, contra a bordoada, não há argumento. É a falência da palavra. A tradição cristã inovou a prescrição do Princípio de Talião (“olho por olho...”), herdada do Antigo Testamento, com o “dar a outra face” do Novo Testamento; hermenêutica religiosa à parte, vejo com sérias reservas um e outro princípio, mas essa não é uma reflexão religiosa, então restrinjo-me ao registro. Se alguém responde à minha perspectiva com um tiro, só me resta (a mim, cidadão, no sentido da citoyenneté que emerge com o Iluminismo – do qual tento desesperadamente me preservar como filho) dar-lhe um tiro de volta (caso tenha sobrevivido ao primeiro tiro), ou recorrer à Lei – quando e se houver uma.
Esse introito vem a propósito da ação bárbara de ontem, em Paris, onde um grupo de indivíduos encapuzados invadiu a sede do jornal semanal Charlie Hebdo e matou a tiros jornalistas, funcionários e um segurança. Ao que tudo indica, tal ato foi a resposta que encontraram às posturas e charges publicadas pelo jornal, consideradas ofensivas ao Islã. A República Francesa tem leis e aparato policial que certamente reagirão à altura: no momento em que escrevo essas mal-traçadas linhas, já há um suspeito preso, e outro sendo procurado. Espero que sejam todos presos, julgados, sentenciados e condenados. O mais preocupante, contudo, além da eclosão da barbárie em pleno coração de Paris (que persiste sendo, pra mim, um dos epicentros da civilização nesse planeta), é o efeito tóxico desse ato. Imagino que a extrema direita francesa agradeceu de coração pela imensa ajuda desses idiotas, e irá à luta pela demonização de tudo que tenha relação com o mundo árabe; a maioria silenciosa que compra suas baguettes e aluga seus imóveis restringirá ainda mais o acesso de magrebinos suspeitos (e, pode ter certeza, vai sobrar para os brasileiros – passei por isso...). O clima social francês, essa entidade abstrata mas poderosa, deve neste momento estar pesando de forma desagradável, agourenta, preocupante.
            E nós, apóstolos e ativistas da palavra e do embate de idéias – para onde vamos? Como ficamos? Certamente não temos o que dizer aos encapuzados – o que me passa pela cabeça dizer é melhor manter em privado. Interessa-me mais o Senhor e a Senhora “Tout le Monde”, em Paris, na França e alhures. Aquele e aquela que têm duas convicções: 1. Esses árabes desgraçados mostraram sua verdadeira face, e deviam sumir da face da terra (ou pelo menos da França); 2. Esse pessoal do Charlie Hebdo, por outro lado, não tinha nada que publicar as atrocidades que publicam, fizeram por onde atrair o que aconteceu (guarda certa semelhança com a lógica da saia curta que atrai estupro). Meu Senhor, Minha Senhora: apliquemos a lei ao grupelho terrorista, de forma exemplar; mas sobretudo apliquemos a esse tipo de postura a contrapartida mais mortífera que ela pode receber: a defesa intransigente da cidadania plena no que ela tem de liberdade de pensamento e expressão, de proteção à diferença, à divergência, à discrepância da maioria, sem que ninguém amordace ninguém. Quanto ao Charlie Hebdo, mesmo que não seja o caso de comprá-lo e lê-lo, mesmo que seja o caso de considerá-lo pueril e irresponsável (ou qualquer outro epíteto depreciativo), ele precisa continuar existindo, não por ele em si, mas pelo que representa em termos do combate ao conforto da regra coletiva dominante. Mais que burra (dixit Nelson Rodrigues), a unanimidade é fascista e bárbara. Ao fuzilar os jornalistas do Charlie Hebdo, os encapuzados tentaram de fato assassinar uma forma de funcionamento social; pois bem, NÃO PASSARÃO! Não passarão porque persistirá havendo quem pense e quem articule, e quem receba essa palavra e a enriqueça. Na salvaguarda da dialogia da palavra reside nossa única esperança de fazer face à barbárie. Nesse sentido, todo apoio a que se reconstrua o jornal, à substituição dos que tombaram por outros chargistas na lide das pranchetas de concepção. Todo apoio à preservação da liberdade, da divergência e da vida.