domingo, 13 de março de 2016

América Latina: qual a razão da pane?


Com esse título, o jornalista do Le Monde Renaud Lambert publicou reflexão de  grande qualidade sobre o momento de crise dos governos de esquerda na América Latina inteira, de Cuba até a Argentina, passando pela Venezuela, Bolívia e Brasil  (Amérique Latine, pourquoi la panne? – Le Monde Diplomatique, edição Janeiro-2016). Essa análise nos convém muito, a nós brasileiros, por três razões: primeiro, trata-se de uma visão de fora, útil nessa hora, em que se acirram aquelas tensões excessivamente atravessadas pelas emoções, que nascem e explodem nas redes familiares de WhatsApp, aqui no Facebook, nos contextos de trabalho, além dos ambientes mais clássicos de discussão, como as universidades e grande imprensa; segundo, porque traz elementos estruturais, inerentes aos demônios internos da própria esquerda, que ajudam a ampliar a discussão para além do contexto judicial-policial que tomou conta dos motes de todos os debates que estão postos – o que aliás é o fulcro da abordagem conservadora da grande imprensa no Brasil (a deliberada escolha da análise enquanto “caso de polícia”, com “xerifes” togados e pichulecos; aliás, Kim Kataguiri, golden boy dos movimentos pró-impeachment da presidenta Dilma, escreve hoje matéria de destaque na Folha de São Paulo com o grandiloquente título “Nossa geração sobreviveu”, em que assimila Lula a um dos vilões dos Power Rangers da infância dele... comovente... ); terceiro, porque traz um olhar que busca os invariantes à debacle atual da esquerda em toda a América Latina, resguardadas as especificidades de cada realidade nacional, mas sem perder de vista alguns pontos cruciais comuns e históricos – e quem não conhece bem a história, está condenado a repeti-la, como advertiu Edmund Burke (e Ernesto Che Guevara adotou como mote) há mais de 50 anos atrás. 
Minha opção pelo comentário, ao invés da tradução pura e simples, deveu-se a meu interesse em mudar o foco original de análise de Renaud Lambert da América Latina como um todo, para a análise do contexto brasileiro em primeiro plano, com a América Latina como pano de fundo. De toda forma, registro aqui o crédito dos pontos de análise ao autor do texto de referencia – é dele o mérito, é meu o risco.
Breve tour latino-americano proporcionado por Lambert em vários pontos de seu texto: (1) Um repórter uruguaio perguntou ao então presidente do Uruguai em final de mandato, José “Pepe” Mujica, por que razão seu governo não tinha conseguido levar mais longe as reformas que estavam em sua plataforma político-ideológica; com seu jeito despachado, Mujica respondeu, curto e grosso: “Porque as pessoas querem iPhones!”; (2) Nessa mesma linha, o embaixador da Venezuela na França,  Héctor Michel Mujica Ricardo, relata conversa com uma jovem mulher num bairro popular de Caracas, às vésperas da eleição presidencial venezuelana de 2013 – mulher que, segundo o embaixador, encarna uma das categorias sociais mais favorecidas pelas políticas redistributivas do  Chavismo; diz ela: “Antes, eu vivia na miséria. Foi graças a Chaves que eu consegui melhorar. Agora que não sou mais pobre, eu voto com a oposição.” (3) Bolívia, depoimento de um pequeno lavrador beneficiado pela política nacionalista e de valorização do pequeno agricultor lançada pelo presidente Evo Morales: “Agora que eu tenho dinheiro, eu posso tudo!” (4) Brasil: o cientista político Armando Boito, em análise acerca do enfraquecimento do MST, traz a seguinte explicação: os pequenos lavradores-sem terra que se beneficiam de uma gleba e que passam a ter alguma coisa a perder assumem imediatamente uma lógica e visão de vida cara a uma “sociedade de proprietários”, tão conservadora quanto aquela defendida pelos mais conservadores grandes proprietários da direita rural brasileira; isso evidencia que, ao lado do sucesso imediato de conseguir uma gleba via invasões, não se conseguiu mudar a mentalidade de todo aquele que recebe essa gleba, que doravante se vê como um “dono de terras”(mesmo que em miniatura...).
Para além dessas dinâmicas que se passam nas classes mais desfavorecidas, como é o caso da famosa “classe D de Lula” (aquela que ascende do lúpem-proletariado e consegue seus primeiros boletos, além de pela primeira vez enviar seus filhos à universidade pública), há que considerar importante processo no seio das classes médias. Agora há pouco, em 2015, nas vésperas da última eleição presidencial argentina, redes sociais consideradas progressistas divulgaram o documento “Os ciclos econômicos da Argentina”, que em meu entendimento são passíveis de apropriação, como ferramenta de reflexão, para a cena brasileira. Segundo a análise argentina, a história política daquele país estaria condenada a um ciclo vicioso com as quatro etapas seguintes:
[1] A direita assume o poder e destrói o poder de compra, as perspectivas e sonhos das classes médias.
[2] As classes médias pauperizadas ficam mais sensíveis às propostas progressistas, de resgate da cidadania, de reação aos vilões de direita que as pauperizaram,  passam a votar à esquerda, aliando-se aos bolsões do voto militante de esquerda, e conseguem eleger um governo de esquerda.
[3] Eleito, esse governo volta-se em primeira instância para os bolsões de pobreza, que ascendem socialmente em termos de consumo e inserção social, e beneficiam igualmente as classes superiores, tendo em vista o caráter reformista (e não revolucionário – o que de resto não é possível pela via de acesso ao poder através do canal democrático do voto); as oligarquias querem, contudo, recuperar sua hegemonia, pois sabem que governos de esquerda, mesmo na condição de aliados pela governabilidade, não são suficientemente  confiáveis.
[4] Inicia-se movimento político de reconquista do poder pelas oligarquias; as classes médias empoderadas identificam-se com o poder conservador de direita, e mesmo os “remediados” com up-grade recente para a classe D se tornam igualmente sensíveis ao discurso conservador. Esse dado estrutural pode ser circunstancialmente agravado por aspectos relacionados à corrupção no trato da governabilidade, e perspectiva de diminuição de direitos advindos da necessidade de reformas tributárias – notadamente aquelas ligadas à previdência e aposentadoria, por exemplo. A direita, nesse contexto, reconquista o poder, com ampla ajuda da classe média – fiel da balança que antes ajudou a eleger a esquerda, e que agora ajuda a eleger a direita, dando um tiro no pé representado pela retomada do ponto 1 do ciclo: as oligarquias, afinal, não têm compromisso com classes médias metidas a besta, mas estas, de forma sistemática e cíclica, demonstram amnésia histórica recorrente.
Estamos, nesse belo país, em pleno estágio 4, às vésperas do retorno ao estágio 1. Eu já vi esse filme antes, com gente de minha família marchando com Deus pela Pátria, Família, Tradição e um mínimo de perspectiva de comprar um carrinho melhor, depois todos orgulhosos de meter os peitos, junto com Fafá de Belém, e urrar pelas Diretas, depois eleger aquele que  antes chamavam de Sapo Barbudo, e agora lutar pelo aniquilamento completo de tudo que cheire a petismo, esquerda, lulas, dilmas e assemelhados, todos convencidos que fazem isso em prol da honra, da moral e dos bons costumes, esquecidos do atavismo maldito em que estão metidos desde sempre .
Como, justamente, quebrar esse ciclo atávico que condena não só o Brasil, mas TODA a América Latina, conforme argumenta e analisa Renaud Lambert? Como avançar efetivamente por vias que não explodam o Estado de Direito e dessa forma preservem a Democracia, e ao mesmo tempo permitam a construção de um estado efetivamente progressista? Claro está que a própria formulação da questão denuncia alguns pressupostos que me são caros – como a preservação de um status-quo republicano, democrático e plural que, para algumas perspectivas, JAMAIS permitiria passar do mero reformismo à revolução estrutural sem a qual nada poderia vir a quebrar o ciclo maldito acima. Prefiro as vicissitudes de erros e acertos desse velho e  inatingível ideal democrático às pretensões dos “centralismos democráticos” oriundos dos diktats de qualquer segmento ideológico do espectro – da extrema direita à extrema esquerda, passando pelos que juntam Deus, Diabo, política e governo.
Claro está que nem de longe consigo discernir resposta pronta e fechada para essa questão. Até porque problemas complexos não se resolvem com atos de fala que não estejam lastreados no dinamismo da ação política envolvendo indivíduos, coletivos, coletivos de coletivos, e História. Só isso. Mas formulá-la em termos menos simplórios me parece um primeiro avanço. Tudo o que tenho são vislumbres para navegação própria em tempos de mar revolto, de forma a ficar em paz com minha consciência e me poupar do risco de respostas singelas para questões idem (“Vai pra rua tal dia, em prol da luta contra a Corrupção, o Demônio e o Mal?” “Vai para a rua defender as verdadeiras causas populares?” Etc.).
Marx ensinou que uma forma produtiva de categorização dos protagonistas da cena social, econômica e histórica é aquela que os cinde em termos de proprietários dos meios de produção (o Capital em suas variadas formas), e proprietários da força de trabalho (aqueles que alugam esse insumo ao Capital). O interesse central dos primeiros é o lucro – o mais amplo possível; já o interesse central dos últimos é o salário – o mais “justo” possível (no limite inexorável imposto pelo princípio da mais valia).  Adoto essa categorização como minha e como absolutamente central como marco zero de uma série de análises. Usualmente essa cisão alimenta apelidos de famílias políticas, a mais popular delas sendo a clássica cisão nascida na Assembléia Francesa, a “direita” (“droite”) e “esquerda (“gauche”); digamos assim, numa perspectiva simplificada, que a direita costuma representar os interesses dos donos do Capital (que são naturalmente menos numerosos – donde outro qualificativo da direita – oligárquica (vide prefixo grego da palavra); e a esquerda, por sua vez, representaria grosso modo os interesses da massa trabalhadora locatária de sua força de trabalho. Há muito me convenci de duas coisas, um tanto anti-românticas: ser de direita ou de esquerda não pode ser facilmente assimilado a categorias como “bem” e “mal”, mas diz respeito a interesses inconciliáveis. Por outro lado, ter uma leitura do mundo em termos de esquerda e de direita não vem dado de presente em função da inserção do indivíduo num segmento abastado ou pobre da sociedade: ser pobre não é condição garantidora de ser de esquerda, conforme ilustram muito bem os depoimentos reproduzidos lá na abertura dessas reflexões. Ademais, o proprietário de uma singela facção de produção de vestuário no interior do nordeste brasileiro é tão proprietário quanto o dono (ou acionista principal) de uma fábrica de automóveis. Ambos terão uma relação estruturalmente semelhante com seus assalariados.
Direita e esquerda são portanto estruturalmente incompatíveis, o que não significa que não possam (e mesmo não devam) instituir alianças de governança. Pensemos numa fábrica “X” em um determinado contexto econômico: sua proteção e manutenção pode ser foco sinérgico de ações de um governo de aliança direita-esquerda, mesmo que no fundo cada pólo mire interesses diretos e até certo ponto (vide mais uma vez Marx) contraditórias: para os patrões, o lucro, para os trabalhadores, a manutenção dos postos de trabalho, e dos direitos que regem e balizam o estabelecimento do salário direto e vantagens associadas (como a aposentadoria, por exemplo). Se as alianças são possíveis e mesmo desejáveis, não é possível que a esquerda passe do estágio de governo com a direita para o estágio de governa para a esquerda (cf Lambert). Esse é um erro que a direita raramente comete, e que infelizmente ocorre seguidamente aos regimes de esquerda (o que caracterizaria o estágio três do ciclo proposto pelos argentinos, descrito acima). Lula advertia, em colóquio no Instituto Lula, proferido em 05/10/2015, que “cada vez que um partido de esquerda chega ao poder, ele se fragiliza.” É natural que ele se fragilize, porque ele tem diante de si uma tarefa tríplice: a) manter no curto e médio prazo a governabilidade, e no longo prazo o poder (uma longa saga de trocas de favores se insere aqui, desaguando na cena brasileira atual) ; b) manter um programa de esquerda, que vai muito além de proporcionar ao povo trabalhador meios para que cada um brinque de “ser bacana”, ser consumidor, jogar o mesmo jogo de sempre – conseguir mandar os filhos para a escola e para a saúde privadas, ao invés de algo mais além... ; c) manter a própria vida orgânica das entidades partidárias, cujos militantes de base agora disputam e perdem espaço para os companheiros que têm missões de governança (segundo Lambert, isso ocorreu de forma intensa tanto na Venezuela, quanto na Bolívia e no Brasil); a fragilização da militância, entenda-se, é fatal ao funcionamento de uma entidade política que se pretenda de esquerda, e essa fragilização costuma ser urdida historicamente pela própria dinâmica do partido de esquerda que sobe ao poder. É nesse contexto que os cientistas sociais argentinos Alana Moraes et Jean Tible (« ¿ Fin de fiesta en Brasil ? », Nueva Sociedad, no 259, Buenos Aires, septembre-octobre 2015) escrevem que hoje, no Brasil, « o PT se constitui muito mais em obstáculo [à uma ação política efetiva de esquerda] que em ferramenta.” Como disse Frei Beto ao se despedir do Planalto, de Lula e do engajamento na máquina de governo e poder, o PT havia se perdido de si mesmo ao subir a rampa do palácio presidencial. Nesse sentido, veja o leitor que a derrocada atual do PT, e, lamentavelmente, de uma proposta de esquerda para o Brasil, é alimentado e ampliado pela crônica policial dos intestinos do método de governança na qual o PT se lambuzou, mas o PT já havia urdido a crônica de sua morte anunciada muito antes disso – não só o PT, mas as organizações de esquerda em vários outros países que elegeram recentemente governos dessa tendência, e perdem as respectivas eleições uns após outros. O PT está hoje refém das ruas TAMBÉM pelos desmandos delituosos de seus quadros (de tesoureiros a presidentes – mas suspeito que deve ter sobrado um troco até para os faxineiros das sedes do partido – viva a inclusão social petista!). Mas o PT vai cair porque não soube estabelecer um projeto de governança que aliasse interesses variados do espectro direita-esquerda de interesses do Brasil, estabelecendo pontos de convergência e preservando papéis e compromissos históricos. Com isso o PT perdeu a classe média – esse grupo que vive sonhando num futuro sempre melhor para seus filhos – e vai perder a classe trabalhadora, quando os boletos começarem a ficar sem pagamento devido à perda dos empregos e respectivos  salários.  
Resta, por fim, aludir a como ficamos para os dias que virão. Poupo-me aqui do varejo das discussões sobre impeachment sim-não, renúncia sim-não, semipresidencialismo (a nova moda nas discussões), e por aí vai. Tudo o que diria é que é preciso quebrar o ciclo aludido pelos argentinos evitando a todo custo divulgar a ideia segundo a qual a saída, agora, deveria ser necessariamente conservadora – eleger a direita. Esse é um engodo cansativo, é por ele que se retoma o ciclo do rame-rame da história dessa sofrida América Latina. A proposta de esquerda continua de pé para todo aquele que se insira na condição de assalariado, mas também na condição de quem quer para o país um governo que tenha compromisso com uma maioria fragilizada, e não com uns poucos que assumem a posse dos meios de produção do país (a percentagem aliás desses protagonistas diminuiu bastante, em face da “política de esquerda” dos últimos três mandatos petistas). Não há perspectiva para a classe média fora da esquerda, pela simples razão desse segmento ser constituído, em sua maioria, por trabalhadores que possuem bens (até casas na praia e bons automóveis), mas não os meios de produção dos mesmos. Leões e cervos olham a savana a partir de pontos de vista sempre inconciliáveis, apesar de que,  tudo bem pesado, têm muitos interesses em comum (sempre a partir de perspectivas diversas).
A classe média brasileira está às vésperas de eleger um governo de direita no Brasil – posso sentir isso aqui nos posts de FaceBook e WhatsApp que explodem em meu smartphone enquanto escrevo. O velho ciclo tem grandes chances de retomar, até porque o PT está bastante ferido, e outros vetores de proposta de esquerda não têm musculatura para apanhar a bandeira e retomar a estrada. Freud escreveu, no contexto da economia psíquica e do trato dos sintomas neuróticos, que aquele que não entende seus sintomas está condenado a repeti-los. Sem drama e sem derrotismo, com determinação e paciência histórica, precisamos alimentar narrativas, argumentações e discussões que preservem a autocrítica das propostas chamadas “progressistas”, de esquerda – progressistas porque são as únicas compromissadas com o resgate dos mais frágeis, com a correção das injustiças do Darwinismo social que o Capitalismo é pródigo em gerar. Votar na direita, nesse contexto, permito-me dizer (apesar das pedradas que acarretará), é algo absolutamente pertinente para quem se alinha do lado da oligarquia dos proprietários; no caso dos demais, trata-se de equívoco que oscila entre a burrice e a ingenuidade, a depender de cada caso. Trabalhar com a direita, sim (eventualmente); trabalhar para a direita, jamais. Esse é o espírito que quero compartilhar e disseminar para os dias que virão. Como isso vai se traduzir em termos do concreto mais concreto – direções, partidos, candidaturas – vai depender de quem continuará solto ou preso, elegível ou inelegível, vinculado a qual sigla partidária, inserido em qual narrativa biográfica. Fundamental será a oferta e manutenção de uma proposta de esquerda – com todas as dificuldades de se conseguir uma, atualmente; sabendo-se que a alternativa à direita não é alternativa para muitos – grupo em que me insiro – é pura neurose política, para dizê-lo da forma suave dos psicólogos...