Em honra a Mikhail Bakhtin (1895-1975)
Houve um tempo durante o qual as divindades tudo podiam ver e tudo podiam saber: eram omniscientes e dispunham de omnivisão. Além disso, as divindades possuíam o dom privilegiado da linguagem monossêmica, em que cada palavra e cada frase davam conta com perfeição impecável da realidade do mundo das coisas e das idéias: tal linguagem estava à prova do engodo, do engano, do deslize, da alusão. Tais dotes conferiam às divindades de então completa autonomia, mas passaram a torná-las perigosamente autosuficientes, isoladas, ensimesmadas e tristes. Ao constatar tal situação, o Criador viu que sua obra mais bela corria riscos, e tomou uma medida radical: tirou (alguns dizem que Ele baniu) as divindades do paraíso da monologia. As divindades, doravante, estariam condenadas à restrição de visão e conhecimento, devendo todo e qualquer excedente de visão ser buscado no contato com outra divindade, colaborativamente. Terminou o tempo de omnivisão, e se instalou o tempo da construção sem fim em regime de dialogia. Cada divindade, doravante, teria de demandar e conseguir de outra divindade o excedente de visão que lhe permitisse se aproximar da condição anterior perdida, sem nunca mais reconquistá-la. Para culminar, o Criador retirou destas suas criaturas o dom da linguagem monossêmica, e instaurou o regime da polissemia, da metáfora, do significado flutuante que tornava cada esforço de comunicação uma empreitada cheia de surpresas, riscos e distorsões. Nesse novo regime, mesmo o silêncio que outrora era o contraponto da fala monossêmica total, agora assumia a possibilidade de também falar, porque mesmo ele, o silêncio, não se fixava a uma única possibilidade como não-sentido, como ausência de fala: o silêncio doravante flutuava, ele também, em possibilidades cujo resgate dependia de quem silenciava, pra quem silenciava, por que silenciava. Nesse novo regime, o criador verificou que suas criaturas não significavam nada mais sozinhas, a não ser potência. O Criador ficou feliz com sua correção de rumo, e decidiu que essas novas divindades, agora condenadas a existir em dialogia, não mais seriam divindades, e sim humanos. Porque o Criador intuiu que havia privado suas divindades do omnipoder que as tornava divindades, e com isso as havia extinto, mas havia trazido para a criação criaturas novas, frágeis e sofridas, condenadas a fazer sentido do mundo com o suor diuturno do trabalho conjunto. Tais criaturas, expulsas do paraíso monológico omnipotente, se viram em situação de desespero e angústia, de desamparo e insuficiência. Mas se deram conta que, em contrapartida, se abria para elas um devir de possibilidades que antes não estava posto, apesar dos riscos que comportava. E como humanos, sentiram que tinham herdado em potência a divindade, apesar de que agora tal divindade não era privilégio de nenhum humano per se, e sim possibilidade em aberto de mais-de-um. O Criador fiou feliz com seu movimento, e chamou essa nova criatura, agora humana, de Adão, e o Alter, de quem doravante Adão dependeria, com quem doravante caminharia, para quem doravante falaria e silenciaria e a quem escutaria, ele chamou de Eva. Juntos, Adão e Eva deram assim início à epopéia da aventura humana.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
O ladrão de galinhas e Mahatma Gandhi
Isso devia ser um comentário a post de minha filha, intitulado “De mentirinha”, postado em seu blog “De que são feitas as meninas” (http://dequesaofeitas.blogspot.com/ ). Minha incorrigível prolixidade gerou um comentário desmesurado, que não pode ir atulhar o blog dela: eu que me responsabilize pelas minhas besteiras! Então, aí vão.
A discussão sobre o que é certo, o que é direito, o que é jeitinho escrotinho ou escrotão, comporta um patamar fácil, outro médio, e outro difícil. No patamar fácil, decidimos acerca de roubar ou não a galinha gorda e vistosa do vizinho. Foi ele quem comprou a franguinha, criou, cuidou, a galinha é dele, o mérito é dele, não é direito roubar-lhe a galinha, pronto. Fácil. No patamar seguinte, trata-se agora do vizinho que gentilmente quer presentear-lhe com sua galinha gorda, a você, síndico do condomínio onde o vizinho mora, e onde tem alguns problemas com os demais condôminos. Aí as coisas são mais sutis: dar presentes não é errado. Recusar receber presentes é estranho, às vezes grosseiro. Seduzir, adular com presentes em proveito próprio é, digamos, inadequado. Receber presentes de quem tem interesses pessoais que você vai arbitrar é perigoso. Errado, errado mesmo, não há nada aqui a registrar, mas o perigo ronda... Esse é o nível intermediário. No nível difícil, a questão é a seguinte: seu filho passa fome, a galinha do vizinho está gorda e dará uma bela canja. O princípio 1, zelar pela vida dos filhos, tem seu papel e espaço; o princípio 2, respeitar a propriedade alheia, aquele discutido acima, também é cristalino e pertinente, merece respeito. O problema aqui é que os princípios 1 e 2 brigam entre si na cabeça de alguém: um princípio pertinente deverá ser sacrificado em nome de outro princípio pertinente. Aqui nesse nível, moram movimentos históricos: o princípio da desobediência civil pregado por Gandhi, a Inconfidência Mineira; os franceses gostam de dizer que não se faz uma boa omelette sem quebrar ovos, e usaram desbragadamente a guilhotina como batedeira de ovos durante a segunda fase da Revolução Francesa. É claro que a distância entre um ladrão de galinhas do nível 1 e um Mahatma Gandhi do nível 3 é enorme, mas o problema é que ambos podem pertinentemente parar cadeia; o problema é que ambos cometeram delitos.
O que é certo e o que é errado é uma questão de consciência pessoal, e de combinações sociais na forma de leis (jurídicas, religiosas, do condomínio, do partido político, do clube de futebol). O que é certo e o que é errado muitas vezes demanda grande esforço de reflexão, e é nisso que reside uma das coisas mais fantásticas da aventura de ser humano. A quase pior coisa que pode ocorrer é a anomia, a falta de um sistema de regras que ofereça alguma base para que alguém funcione nessa existência. Cometendo erros aqui e ali, mesmo deslizes, mas tendo sua referência, seu guia. Caetano e a Tropicália que me perdoem, mas proibir não só não é proibido, como é necessário. A pior coisa é o cinismo. O cinismo é uma espécie de disenteria do caráter, se me permitem a metáfora de gosto duvidoso. Ser cínico é debochar das regras, é servir-se delas, por cima e para além de qualquer preocupação com a moral e a ética. Uma vez perguntei a Jurandir Freire, numa palestra que ele fez em Recife acerca da Ética (assim com maiúscula, porque Jurandir fala de assuntos assim com maiúscula), se a violência seria necessariamente anti-ética. Ele respondeu de pronto que absolutamente não! Respondeu que para ele, muitas vezes, a violência se revestia da chama sagrada do dever fazer. E finalizou comentando que aquilo que ele vinha de dizer não tinha qualquer relação com o massacre da Candelária, no Rio de Janeiro, ou com os golden boys candangos que haviam ateado fogo num índio-mendigo numa rua de Brasília. A violência cínica, assim como a ação cínica de qualquer matiz, não se regula por nenhum princípio que não seja o narcisismo nefasto de seu agente: atear fogo em Roma ou em gente desvalida por desfastio, saquear bens alheios porque a oportunidade está ao alcance da mão, e em seguida criticar quem saqueia simplesmente porque agora convém.
Discutir o que é certo comporta dificuldades em situações diferentes, mas é uma das coisas mais dignas da aventura humana, o caminho civilizatório por excelência. Não é grande quem é certinho: é grande quem tem princípios e os leva a sério, mesmo que, às vezes, pague caro por eles diante de seu tempo e de sua gente. Mas do outro lado da rua pode morar alguém grandioso e luminoso, mesmo fora do foco da mídia. Nenhum de nós precisa fazer voto de heroísmo: basta tentar de alguma forma permanecer inteiro (ou quase), porque torcer princípios tira pedaços, quem é sério sabe disso. E aí, cabe a cada um decidir como gerir as galinhas que surgirão vida afora.
A discussão sobre o que é certo, o que é direito, o que é jeitinho escrotinho ou escrotão, comporta um patamar fácil, outro médio, e outro difícil. No patamar fácil, decidimos acerca de roubar ou não a galinha gorda e vistosa do vizinho. Foi ele quem comprou a franguinha, criou, cuidou, a galinha é dele, o mérito é dele, não é direito roubar-lhe a galinha, pronto. Fácil. No patamar seguinte, trata-se agora do vizinho que gentilmente quer presentear-lhe com sua galinha gorda, a você, síndico do condomínio onde o vizinho mora, e onde tem alguns problemas com os demais condôminos. Aí as coisas são mais sutis: dar presentes não é errado. Recusar receber presentes é estranho, às vezes grosseiro. Seduzir, adular com presentes em proveito próprio é, digamos, inadequado. Receber presentes de quem tem interesses pessoais que você vai arbitrar é perigoso. Errado, errado mesmo, não há nada aqui a registrar, mas o perigo ronda... Esse é o nível intermediário. No nível difícil, a questão é a seguinte: seu filho passa fome, a galinha do vizinho está gorda e dará uma bela canja. O princípio 1, zelar pela vida dos filhos, tem seu papel e espaço; o princípio 2, respeitar a propriedade alheia, aquele discutido acima, também é cristalino e pertinente, merece respeito. O problema aqui é que os princípios 1 e 2 brigam entre si na cabeça de alguém: um princípio pertinente deverá ser sacrificado em nome de outro princípio pertinente. Aqui nesse nível, moram movimentos históricos: o princípio da desobediência civil pregado por Gandhi, a Inconfidência Mineira; os franceses gostam de dizer que não se faz uma boa omelette sem quebrar ovos, e usaram desbragadamente a guilhotina como batedeira de ovos durante a segunda fase da Revolução Francesa. É claro que a distância entre um ladrão de galinhas do nível 1 e um Mahatma Gandhi do nível 3 é enorme, mas o problema é que ambos podem pertinentemente parar cadeia; o problema é que ambos cometeram delitos.
O que é certo e o que é errado é uma questão de consciência pessoal, e de combinações sociais na forma de leis (jurídicas, religiosas, do condomínio, do partido político, do clube de futebol). O que é certo e o que é errado muitas vezes demanda grande esforço de reflexão, e é nisso que reside uma das coisas mais fantásticas da aventura de ser humano. A quase pior coisa que pode ocorrer é a anomia, a falta de um sistema de regras que ofereça alguma base para que alguém funcione nessa existência. Cometendo erros aqui e ali, mesmo deslizes, mas tendo sua referência, seu guia. Caetano e a Tropicália que me perdoem, mas proibir não só não é proibido, como é necessário. A pior coisa é o cinismo. O cinismo é uma espécie de disenteria do caráter, se me permitem a metáfora de gosto duvidoso. Ser cínico é debochar das regras, é servir-se delas, por cima e para além de qualquer preocupação com a moral e a ética. Uma vez perguntei a Jurandir Freire, numa palestra que ele fez em Recife acerca da Ética (assim com maiúscula, porque Jurandir fala de assuntos assim com maiúscula), se a violência seria necessariamente anti-ética. Ele respondeu de pronto que absolutamente não! Respondeu que para ele, muitas vezes, a violência se revestia da chama sagrada do dever fazer. E finalizou comentando que aquilo que ele vinha de dizer não tinha qualquer relação com o massacre da Candelária, no Rio de Janeiro, ou com os golden boys candangos que haviam ateado fogo num índio-mendigo numa rua de Brasília. A violência cínica, assim como a ação cínica de qualquer matiz, não se regula por nenhum princípio que não seja o narcisismo nefasto de seu agente: atear fogo em Roma ou em gente desvalida por desfastio, saquear bens alheios porque a oportunidade está ao alcance da mão, e em seguida criticar quem saqueia simplesmente porque agora convém.
Discutir o que é certo comporta dificuldades em situações diferentes, mas é uma das coisas mais dignas da aventura humana, o caminho civilizatório por excelência. Não é grande quem é certinho: é grande quem tem princípios e os leva a sério, mesmo que, às vezes, pague caro por eles diante de seu tempo e de sua gente. Mas do outro lado da rua pode morar alguém grandioso e luminoso, mesmo fora do foco da mídia. Nenhum de nós precisa fazer voto de heroísmo: basta tentar de alguma forma permanecer inteiro (ou quase), porque torcer princípios tira pedaços, quem é sério sabe disso. E aí, cabe a cada um decidir como gerir as galinhas que surgirão vida afora.
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