sexta-feira, 28 de outubro de 2022

“Cada um a seu modo” (em honra, empréstimo e epígrafe a Luigi Pirandello): Dois personagens à procura de um Brasil


Prólogo:

Da mesma forma como os sonhos se alimentam de restos diurnos, esta curta encenação em 3 atos se alimenta de restos de interações nas redes sociais que têm intermediado as nossas interações nesses tempos atuais. Aqui e ali algum leitor terá aquela sensação de familiaridade - às vezes tão forte que a voz interna acenderá a luz amarela do “EPA!!!”.

Os personagens aqui encenados são Maximiliano e Jaime. Ambos estão em sala de cuidados paliativos em hospital privado de uma cidade de médio-grande porte do Brasil. Ambos estão em fase terminal decorrente de doença grave. Estão lúcidos, pelo menos de um ponto de vista médico... Maximiliano é oficial reformado da Marinha do Brasil, da qual saiu para a reserva na patente de Almirante de Esquadra. Jaime é professor universitário, vinculado a instituição federal de ensino superior, no grau de professor-titular de um departamento vinculado às ciências humanas. 

A encenação se passa na contemporaneidade imediata (dias ANTES do segundo turno da eleição para presidente e governadores no Brasil, em 30 de outubro de 2022). 

ATO I - Encontro, Colisões

Setting: Sala coletiva de cuidados paliativos em serviço hospitalar de cidade brasileira, com 6 leitos disponíveis, dois leitos ocupados por Jaime e Maximiliano, que estão lado a lado. Os demais leitos estão vagos. Os pacientes estão conectados a dispositivos de vigilância de sinais vitais; estão despertos. Reina completo silêncio no ambiente, exceto pelos bips ocasionais dos aparelhos de vigilância. Os personagens serão doravante identificados por M (Maximiliano) e J (Jaime). 

[M e J olham fixamente para o teto por um certo tempo. Quase que simultaneamente, resolvem olhar quem está ao lado, os olhares se cruzam e, constrangidamente, voltam a fitar o teto. M rompe o silêncio]. 

M: Envelhecer é uma merda mesmo... 
(Pausa)
J: Depende... 
M: É SEMPRE (enfático) uma merda! Só que às vezes é uma merda ainda mais merda, como nessa situação em que estamos (pigarreia), quer dizer, estou...
J: (riso contido) Pode me incluir aí... Não estou aqui a passeio... Câncer. Fase terminal.
M: Mesma merda. E olha que me cuidei a vida inteira! Me sinto injustiçado... 
J: Eu tentei ser bem-comportado aqui e ali, sem fumar, bebendo pouco...
M: Eu parei COMPLETAMENTE de beber há 20 anos!!! 
J: Nem uma cervejinha? Um vinhozinho? Vinho faz bem ao coração, né não?
M: ZERO! Nada! Minha perdição era o uísque... Quase arruína minha carreira.
(Silêncio. Pausa).

M: Sou o Almirante de esquadra na reserva Maximiliano, a seu dispor!
(Nova Pausa).

J: Sou Jaime, professor-titular em universidade pública, em licença para tratamento médico, e sem muita esperança de voltar... 
(Pausa mais longa).

J: Sempre achei a Marinha uma das armas mais ... (pausa curta) arejadas... (riso contido)
M: A Aeronáutica é mais! É a arma mais civil... Já o Exército é bronca... (risos).

(Pausa)

M: Tenho mestrado e doutorado na área de tecnologia de informação embarcada...
J: Bom! Tenho doutorado e pós-doutorado em minha área.
M: Educação é importante, porque é o caminho da competência. Competência é tudo. Quer dizer, quase tudo. Competência e vergonha na cara. O Brasil precisa de um freio de arrumação urgente. 
J: Ah, precisa sim! 
(Pausa)

M: Sempre amei meu trabalho - navegar, cuidar de minha embarcação, de minha equipagem... A vida sempre ficava mais simples em mar aberto... 
J: Também nunca soube viver fora do campus, da sala de aula, da formação dos meus alunos...
M: Mas além de competência e educação, é preciso ter RESPEITO. 
J: Concordo. Sobretudo respeito por aquilo que a gente combinou respeitar... 
M: Respeito por VALORES. 
J: Sim.
M: Vamos fazer uma cesta de valores aqui, pra passar o tempo. Eu digo um, você diz outro. Pode ser?
J: Vamos lá! Posso propor uma combinação?
M: Ih... (riso breve). Diga lá!
J: Proponho que um não critique a proposta do outro. Apenas contraponha a sua. Depois a gente pode fazer outra coisa...
M: Concordo. Vá la. comece!  
(Pausa curta)
J: RESPEITO À DEMOCRACIA!
M: RESPEITO A DEUS! 
J: Peço um esclarecimento: QUALQUER Deus?
M: Como qualquer Deus? Só há UM DEUS, o Deus cristão. 
J: Então posso entender que o senhor propôs “RESPEITO AO DEUS CRISTÃO”, certo?
M: Certo, mas acho redundante “Deus Cristão”... Mas vá lá...
J: RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS.
M: Agora é minha vez de pedir um esclarecimento: um BANDIDO (ênfase) deve ter os MESMOS DIREITOS HUMANOS de uma pessoa do BEM? Esse respeito de que o senhor fala vale pros dois do mesmo jeito?
J: Quer uma resposta curta ou uma resposta longa?
M: Curta. Não estamos aqui para plantar carvalhos, e sim para plantar pés de coentro...
J: Então é SIM. 
(Pausa)
M: RESPEITO À FAMÍLIA. Mas já vou logo dizendo, sem nem mesmo o senhor pedir esclarecimento: falo aqui da FAMÍLIA tradicional, normal, com um pai homem, uma mãe mulher, os filhos e outros parentes pra cima e de lado. Não incluo aqui a abominação da família oriunda de casamentos gays. Porque o homossexualismo é uma doença, uma abominação, um atentado à natureza. 
(Pausa)
J: RESPEITO À DIVERSIDADE DE GÊNERO. A condição de heterossexual é somente uma dentre muitas outras. 
M: O senhor está me criticando? Olha a regra de nosso jogo!!! 
J: Não, estou confrontando... É diferente... A gente não propôs jogar aberto? Eu não consigo desligar seus aparelhos, e nem você consegue desligar os meus... (Os dois riem alto...). Então estamos à salvo um do outro... 
M: Mas acho que estamos perto de chegar no limite dessa brincadeira...
J: Pode ser, mas ainda dá pra ir em frente... É sua vez!
M: RESPEITO à MORAL e aos BONS COSTUMES! 
(Pausa)
J: RESPEITO ÀS LEIS E SOBRETUDO À CONSTITUIÇÃO. 
M: Posso pedir um esclarecimento?
J: Sim, já faz parte...
M: Esse respeito à Constituição não deveria poder ser suspenso quando se avaliar que algum de seus princípios está errado, ou envelheceu? 
J: Poderia ser revisto nos termos que ela, a Constituição, estabelece. NUNCA por deliberação por fora dessa regra. Nunca por golpe.
M: E quando os termos que a Constituição estabelece estiver nas mãos de um grupo de políticos corruptos? 
J: Se trabalha para mudar esse grupo.
M: E se houver urgência? 
J: A urgência maior é a preservação da Constituição.
(Pausa)
M: RESPEITO ao PRINCÍPIO DE PROTEÇÃO DA SOCIEDADE, mesmo passando por cima de uma Constituição, tribunais e políticos. 
J: Estou com medo de pedir ao senhor para esclarecer o que quis dizer com “passar por cima da Constituição”...
M: Não pergunte aquilo cuja resposta você conhece. Já deu pra ver que você é um homem inteligente... 
Luzes se intensificam no ambiente, entram enfermeiras com medicamentos:
ENFERMEIRA: Como estão esses meninos? Vejo que já ficaram amiguinhos! (Risos gerais). Hora de trocar medicação e do asseio.

Black-out.

ATO II - Distanciamento, Estranhamento

J: Bom-dia, Almirante - está acordado? Está em forma? 
M: Hummm ... Médio... 
J: Vamos retomar nosso jogo da cesta de valorers? Agora não são mais valores a coletar, e sim princípios, comportamentos, regras e descartar, a jogar fora, combater, por aí. Tá nessa? 
M: Meu humor não está dos melhores hoje... Já vi que o senhor é uma pessoa com quem até dá para conversar, mas acho que nossa conversa não tem futuro... 
J: Ora, vamos até onde der... Talvez até morramos antes... (Risos) Talvez não ganhemos nada com isso, mas também não vejo o que mais possamos perder. 
M: Então vou começar logo chutando o pau da barraca: CORRUPÇÃO, LADROAGEM, USO ESCROTO DO DINHEIRO PÚBLICO.
J: Eita! Vou aderir! Estou nessa também.
M: Hum, sei... 
J: Se controle, olhe a regra sagrada: nenhum dos dois ataca o outro! Sua vez de novo: outra coisa a se ver livre. 
M: COMUNISMO
J: FASCISMO
M: Peço esclarecimento: Comunismo e Fascismo não são uma mesma coisa? 
J: Não. E nem vamos resolver isso aqui, não temos tempo e nem energia. Façamos assim: você troca em miúdos o que chama de “Comunismo”, associando no máximo três palavras -chave, e eu faço o mesmo com “Fascismo”. Bora?
M: Pode ser. Lá vai: COMUNISMO: 1. Desrespeito à propriedade privada; 2. Banda-voou moral, todo mundo come todo mundo; 3. Ódio aos ricos e à religião. 
J: Eu agora: FASCISMO: 1. Endeusamento de líderes que viram mitos; 2. Autoritarismo dos mitos e de sua curriola; 3. Violência contra quem discorda. 
(Silêncio)
J:  Vamos prosseguir? Lá vou eu: NEGACIONISMO anti-científico.
M: CULTURA DO POLITICAMENTE CORRETO. 
J: RACISMO.
M: Esclarecimento: você concorda haver diferenças entre raças? A história mostra o quanto os índios eram preguiçosos, os negros indisciplinados e chegados a uma safadeza. Não haveria diferenças em função da raça? 
J: Pode haver diferenças entre raças, entre nacionalidades e culturas, mas estas diferenças são dinâmicas e devidas à sociedade, à cultura e à história, e não ao código genético. E quaisquer que sejam essas diferenças, não dá pra falar de superioridade ou inferioridade de nenhuma raça sobra outra. 
M: Entendi, mas não concordo completamente. Negros nasceram para os esportes de terra, brancos para a natação, pegando um exemplo olímpico...  Algumas raças têm vocação para umas coisas, outras têm vocação para outras... Como no caso dos cachorros e dos cavalos...
J: O senhor se tornou almirante por vocação?
M: Talvez... Difícil dizer...
J: Pois é, então no mínimo vamos dar a esse assunto o benefício da dúvida... Sua vez de falar a próxima coisa a jogar no mar... 
M: Eita... acho que chegou nossa hora H... 
J: Será?
M: Vou falar o que proponho jogar no mar: LULA e a PETRALHADA!
J: BOLSONARO e a patota de BOLSOMINIONS! 
(Pausa. Silêncio)

M: Eu sabia eu a gente ia terminar nisso. Botei os olhos no senhor e já sabia...
J: É, eu também achava que mais cedo ou mais tarde a gente ia chegar nesse ponto. O que fazemos agora? Na nossa situação, não dá nem pra um esmurrar o outro, ou dar um tiro, ou escangalhar o carro do outro, ou ir barbarizar nas redes sociais, ou cancelar um ao outro, ou mesmo sair fora. Não temos para onde ir. É ficar em silêncio ou continuar noutra conversa - mas qual? A gente podia também gastar um tempo com um xingando o outro, mas não tenho ânimo. 
M: Em outras ocasiões em que estive com gente de seu time, a fase seguinte foi mesmo o xingamento e o afastamento. Quando não coisa pior. 
J: Tenho de admitir que comigo, foi parecido. 
M: Petralha / Petista / Lulista sempre foram para mim sinônimos de filhos de uma puta.
J: Bolsominion / Bolsonarista idem. Além da suspeição de serem completos idiotas. 
M: O que mudou aqui? A vizinhança da morte? Efeito da morfina? 
J: Acho que essas coisas sim, sem dúvida. Mas talvez nós dois tenhamos construído um lugar de conversa, apesar de TUDO.
(Pausa)
M: O que nos separa é a convicção de que o outro não somente é diferente, mas está ERRADO. 
J: Isso mesmo. Pra mim, suas crenças são cheias de equívocos e inexatidões. 
M: Penso o mesmo sobre as suas. 
J: Lá fora, as pessoas estão não somente se estranhando, mas se odiando, e se encaminhando para exterminar umas às outras. Nós aqui nesse espaço não chegamos à etapa do aniquilamento do outro - sabemos que não queremos isso. Mas por quê? Porque já estamos com o pé na cova? Porque o câncer traz a iminência da morte, e aí torna as pessoas solidárias, melhores? 
M: Acho que é mais do que isso.
J: Vamos fazer outro exercício. Vamos tentar localizar pontos que nos UNEM e nos protegem da destrutividade um do outro. Eu começo nessa tentativa (pausa): PAZ
M: Eu concordo! Todo militar sabe que a guerra é, no fundo, um caminho para a paz. Mas paz SEM humilhação, sem desrespeito. Então proponho RESPEITO. 
J: Eu concordo! Respeito ao direito do outro EXISTIR. Respeito a PRINCIPIOS BÁSICOS. Vamos a eles: PRINCÍPIO DO RESPEITO À VERDADE.
M: Todos nós temos vivido movidos à produção de mentiras. A mentira como arma de combate. Proponho PRINCÍPIO do RESPEITO À VIDA. 
J: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO à NATUREZA.
M: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO À SOBERANIA DO BRASIL.
J: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO A CONDIÇÕES MINIMAS DE CIDADANIA PARA TODOS.
M: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO às FORÇAS ARMADAS EM SEUS QUATRO PILARES, a HIERARQUIA, a DISCIPLINA, a OBEDIÊNCIA intra-corporação e a obediência à PÁTRIA acima de TUDO e TODOS. 
(Silêncio longo).

J: Acho que desenhamos no chão um lugar possível onde conviver...
M: Mesmo sabendo que por dentro de cada coisa que cada um disse, mora a ameaça dos entendimentos e interpretações diversas.
J: Há também o perigo da infiltração da má fé. Não somos santos. Muitos de nós são do mal, e transformarão em merda tudo o que tocarem. 
M: Mas aqui e agora convivo com a ideia de que você NÃO É do mal, e nem está tentando me ludibriar - apesar de estar ERRADO quanto a um tanto de aspectos.
J: Digo de você a mesmíssima coisa. A questão é: o terreno de convivência esboçada aqui sobrevive ao mundo real dos que não estão com a morte no horizonte próximo? 
M: ... e mesmo nós: esse terreno de convivência sobrevive ao dia seguinte a 30 de outubro, quando um de nós terá seu candidato derrotado, e ou outro candidato eleito vencedor? 

Luzes se intensificam, entra em cena a enfermeira para os cuidados de praxe.
Black-out


ATO III - Frustração e raiva, Alívio e alegria, Vida que segue. 

Maximiliano e Jaime conseguiram fazer instalar um aparelho de TV na parede da sala de cuidados intensivos. Estamos às 20:30hs da noite do dia 30 de outubro de 2022. Num noticiário da TV, a voz de um locutor anuncia:

LOCUTOR: E Atenção! Boletim do Tribunal Superior Eleitoral acaba de ser divulgado, e informa acerca da conclusão da totalização da contagem dos votos válidos para presidência da república. Com a maioria destes votos, está eleito presidente da república... 

Luiz Inácio Lula da Silva

J: PORRAAAAA!!!!! 
M: Meus Deus, esse povo brasileiro vota como quem caga! Eleger um ladrão!!!!
J: Almirante, você sabe, primeiro, que ladrão por ladrão, o derrotado não fica a dever! Segundo, os julgamentos foram feitos por um juiz de merda. Terceiro, os demais que roubaram, foram enquadrados e cumprem pena. Então é. seguinte: Lula foi eleito, não foi? VAI ACEITAR?
M: Vou aguardar relatório da Defesa quanto às urnas. A depender disso, é o caso mesmo de aceitar, mesmo que muito a contragosto. Difícil ver, mais uma vez, que muitos nesse Brasil NÃO SABEM votar!!!! 
J: Vamos para nova etapa da história. Bolsonaro, você sabe disso, foi um péssimo militar que nunca inspirou vocês, e que vocês engoliram como mal menor. Mas mostrou-se um mal bem maior. Tenho a esperança de que poderemos reconstruir umas tantas coisas, tirar o Brasil da rota de apequenamento em que vinha.
M: Pra muitos de vocês também, Lula é um mal menor. Você sabe disso. Não me venha santificar esse sapo barbudo agora. Vamos retornar à esquerdização desse país, isso é o que mais me entristece. 
J. Não seremos nós que viveremos para ver, infelizmente! Tenho a firme esperança que caminharemos para o melhor. Não para o perfeito, somente para o melhor. Um Brasil democrático, justo, combativo e respeitável, acima de tudo. 
(Pausa)
M: Lamento não poder lhe dar os parabéns, não consigo, não tenho estômago para isso. Nem sei nem se o presidente Bolsonaro terá estômago para entregar a faixa. 
J: Essa é uma obrigação de estadista, não de pessoa A ou B. Mas ele não tem mesmo essa estatura. Quero somente que você respeite o jogo. Seria o que você quereria de mim, caso o resultado fosse outro - não seria?
M: Seria sim. Caso se confirme que tudo correu bem com as urnas, conte com ESSE meu respeito às regras do jogo, e não ao que ele produziu. 
J: Conte, de volta, com meu respeito, com alívio por certo, mas sem escárnio.

Jair Messias Bolsonaro
M: CARALHO!!!! 
J: Como é possível uma merda dessa? Como foi que deixamos isso acontecer? Eleger um genocida incompetente!
M: Foi eleito, não foi? Temos de aceitar e passar à etapa seguinte. ACABOU! 
J: Não acabou. O desastre somente continua. E se dependesse de mim, esse crápula não teria sossego. 
M: Trata-se do presidente eleito de seu país: RESPEITE!
J: Não merece respeito, nem antes, nem agora e nem nunca. 
M: Mas você não pregava o respeito às regras do jogo? Tem de aceitar, tem de respeitar...
J: Não proponho golpe, como o outro lado iria propor, se tivesse perdido. Proponho oposição ferrenha dos que ficarem, porque nesse tempo eu não vou mais estar aqui. Pelo menos essa merda me ajudou a aceitar a morte... 
M: Começa outra etapa da história. Tenho esperança de que, afastado o mal maior da ameaça comunista e do retorno de um governo de petralhas, vamos fazer melhor. 
J: Vamos de fato avançar no desmonte do estado democrático no Brasil. Com o aval do resultado dessa eleição, isso é o que mais me entristece. 
M: Não seremos nós que viveremos para ver, infelizmente. Tenho a firme esperança que caminharemos para o melhor. Não para o perfeito, somente para o melhor. Pátria acima de tudo, Deus acima de todos.
J:  Pobre do Brasil. Tomara que os que vão ficar aceitem que a luta continua. Brasil democrático, justo e combativo acima de tudo! 
(Pausa)
Lamento não poder lhe dar os parabéns que, em situação mais civilizada, seria o caso de dar. Além do mais, parabenizar quem quer que seja, nessa situação, seria quase imoral para mim. 
M: Quero somente que você respeite jogo. Seria o que você quereria de mim, caso o resultado fosse outro - não seria? 
J: Seria sim. Conte com o respeito que não sei se os seus correligionários de direita teriam a grandeza de oferecer. 
M: Conte, de volta, com meu respeito, com alívio por certo, mas sem escárnio.


[As luzes arrefecem completamente. Abre-se foco sobre o Cego Tirésias, em primeiro plano:]

Cego Tirésias: Pra quem não me conhece, sou o Cego Tirésias, em participação especial aqui, fugido do script da tregédia grega Antígona, de Sófocles. Não estou aqui para prenunciar qualquer tragédia - que todos os panteões de deuses história afora livrem vocês brasileiros disso! Venho aqui somente para cumprir a função de “comentador” e arauto, que as tragédias gregas brilhantemente inventaram. 

(O Cego Tirésias toma um copo d’água, trazido pela enfermeira da encenação, tempera a garganta, e continua). 

Cego Tirésias: Neste momento em que me dirijo a vocês, o ato III dessa pantomima ainda não se terá consumado. Mas seja ele qual for, TRÊS coisas podem ser ditas aqui e agora - até porque elas deverão ser ditas de novo tão logo o futuro vire presente. E as três persistirão válidas. 

PRIMEIRO: Nenhum país se define, se confirma e se limita a seus HERÓIS, e nem tampouco a seus VILÕES, BANDIDOS, ANTI-HERÓIS. Nem Bolsonaro nem Lula têm estofo para dar conta de todo o BRASIL. Não será por eles, apesar deles ou graças a eles que a história de vocês sofrerá inflexão decisiva. Cabe a vocês, povo brasileiro, costurar o futuro no tear da luta de todos e cada um.
(O Coro se manifesta):
Coro: Cabe a vocês, povo brasileiro, costurar o futuro no tear da luta de todos e cada um! 

SEGUNDO: a demonização de uns e de outros, vencedores ou perdedores, perdedores ou vencedores, somente servirá para dissipar uma energia preciosa, que vocês não terão como repor. Vocês, Jaimes e Maximilianos,  não precisam passar a se apreciar minimamente - basta que preservem o contexto de respeito a princípios que conseguiram esboçar. Não percam de vista que estão todos na mesma Nau Brasil. 
Coro: Não percam de vista que estão todos na mesma Nau Brasil!  

TERCEIRO: A noite desse dia histórico já se vai e surge um novo dia. Novo não tanto pelo tanto de esperança compartilhada - o dia nasce com um país dividido e às voltas com emoções díspares. Novo simplesmente porque abre um capítulo inédito (apesar das inevitáveis repetições) numa história que se escreve a todas as mãos, e que prossegue. 
Lembrem-se do que lhes falei no texto de Antígona: Doce é dar ouvidos a quem nos fala, se é para nosso proveito.  Que todos e todas se mostrem à altura do potencial desse país. Que esse potencial seja imenso! 
Coro: Doce é dar ouvidos a quem nos fala, se é para nosso proveito.  Que todos e todas se mostrem à altura do potencial desse país. Que esse potencial seja imenso! 


[Maximiliano e Jaime se erguem lentamente dos respectivos leitos, desconectam os sensores dos aparelhos de seus corpos, contornam o leito e, sem confraternização, apenas em paz, desaparecem no plano de fundo do ambiente de encenação. Começa a tocar canção de escolha do montador, a enfermeira entra, dançante, com cartaz de pedido de apoio à causa do piso salarial das enfermeiras brasileiras, no novo tempo que se anuncia. O samba decresce, a iluminação arrefece.]

FIM


Jorge Falcão
Natal (RN), em 22/10/2022.

Acerca das pesquisas de levantamento de opinião: da crença à compreensão

 “Para que se acredite em algo basta ter fé; para lidar com evidências, será preciso pensar para compreendê-las” (Prof. Dr. Samuel Mendonça, em “O risco de desqualificação dos institutos de pesquisa”, Folha de São Paulo, seção Tendências / Debates, pg A3, 05/10/2022.)

Na ressaca que se seguiu ao anúncio dos resultados das eleições brasileiras em 02 de outubro passado, muitos (à esquerda e à direita) urraram seu desalento, decepção e mesmo condenação em relação aos “erros de previsão” cometidos pelos principais institutos de pesquisa do país, cujos dados de levantamento divulgados teriam discrepado “vergonhosamente” do que efetivamente aconteceu. Houve até quem tivesse vaticinado que “os principais derrotados nestas eleições foram os institutos de pesquisa”, e outros, aproveitando a ocasião, já começam a nutrir espírito anti-pesquisas, ameaçando com um tempo em que “(...) não vão continuar fazendo pesquisa”. 

Precisamos recuperar alguns princípios básicos aqui, desde o objetivo central das pesquisas de levantamento, passando pela estrutura conceitual na base da teoria das probabilidades, e culminando com os tipos de erro que inexoravelmente acompanham o tipo de pesquisa a que nos referimos. 

Para o senso comum, as pesquisas aqui aludidas fazem previsão eleitoral - são bolas de cristal que servem inclusive, nas corridas de cavalo, para estabelecer rankings de favoritismo, e com isso, tabelas de pagamento de apostas, com os maiores prêmios para os “azarões”. Como todo bom apostador sabe, “lá de onde menos se espera, é de onde não sai nada mesmo”, só que isso não é inexorável, donde as “zebras”, os azarões que contraiam a as expectativas, vencem e fazem a felicidade daqueles que ganham 100 reais para cada real apostado - mais ou menos a relação estabelecida para as chances de vitória do referido azarão - 1 em 100. Retomemos o seguinte ponto: pesquisas buscam mapear intenções de voto, e não prever o comportamento de voto diante da urna - mesmo que se saiba haver relação entre ambos os fenômenos, só que com margem de erro; há sempre um efetivo variável de respondentes que dizem uma coisa, e pensam/fazem outra, pelas mais diversas razões. 

Falemos sobre esse famigerado erro. O termo de fato abarca três tipos diversos de fenômenos: i) há em primeiro lugar o erro decorrente da chamada variabilidade natural dos fenômenos; os manuais de introdução à estatística inferencial nunca deixam de aludir ao exemplo da moeda “honesta”- aquela com igual possibilidade de dar “cara” ou “coroa” em um determinado número de lançamentos. Mas na prática não é bem assim: em 10 lançamentos de uma moeda perfeitamente honesta, podem ocorrer 6 caras e 4 coroas (ou o inverso), 7 coroas e 3 caras, e até o esperado 5 caras e 5 coroas; a questão crucial passa a ser quando saber que a moeda deixou de traduzir a variabilidade intrínseca aos fenômenos e de fato é uma moeda viciada (esta é a missão precípua das ferramentas estatístico-inferenciais). Nessa mesma linha de raciocínio, se se extraiu de uma determinada população uma amostra, com todos os cuidados técnicos possíveis, e em seguida se repetem os procedimentos e se extrai outra amostra, seria de se esperar que essas amostras fossem muito próximas (em termos do fenômeno que representam), mas elas podem ser dramaticamente diferentes. Isso nos leva à questão do erro amostral: ii) amostras podem diferir em maior ou menor grau da população de que se originam, e podem diferir entre si; isso é absolutamente processual, possível, esperado, mesmo que de forma variável - e ainda não estamos falando aqui de problemas que poderiam/deveriam ter sido evitados, o que nos leva ao ponto seguinte: iii) amostras podem estar viesadas, comprometidas em sua estratificação: seria o caso, por exemplo, de uma amostra com percentagem proporcional elevado de participação de pessoas brancas para representar uma cidade sabidamente não-branca. Este comprometimento pode ter ocorrido acidentalmente, mas também de forma deliberada: aqui estamos no terreno da fraude. 

Não me consta que nenhum dos críticos tenha abertamente aludido a fraude deliberada por parte dos institutos de opinião - mesmo que, imagino, isso esteja no espírito de muitos, desde os desinformados até aqueles que, em postura clara de má fé, desejam mais uma vez desacreditar procedimentos rigorosos, simplesmente para substituir a análise crítica pela fé, conforme comentado pelo Prof. Samuel Mendonça, no texto que forneceu a epígrafe para as presentes reflexões. A ênfase no chamado “DataPovo” em contraposição ao “DataFolha” (um dos institutos de pesquisa no olho do atual furacão) trazem em seu bojo a estratégia da manipulação de informação em favor de posturas e crenças de uns e de outros. 

Se para os atuais críticos os institutos de sondagem de intenção de voto os erros verificados decorreram de incompetência técnica, é o caso de se proceder a exame crítico para localização das fontes de erro, revisão, aperfeiçoamento, e não há dolo aqui; mas se há suspeita de manipulação deliberada e fraudulenta, é o caso, sim, de chamar a polícia - não sem antes considerar que acusações devem ser provadas, e quando falsas, devem retornar contra os acusadores na forma de crime de calúnia e difamação. 

A metodologia (e respectivos métodos e técnicas) subjacente às pesquisas de levantamento de intenção de voto podem e devem passar por avaliação crítica. Num país com dados caducos quanto aos perfis de grupos humanos nos diversos municípios brasileiros, o grau de apuro técnico na estratificação das amostras pode estar comprometido. Por outro lado, as técnicas de coleta de informações, tanto nas situações estimuladas pela apresentação de listas de nomes quanto no caso das coletas não-estimuladas, podem passar por melhorias - foco de aprofundamento não cabível aqui, mas presente na literatura. O incremento da utilização suplementar de grupos focais para cruzamento de informações com dados de questionários traria um ganho importante para a qualidade global do dado coletado (observe-se aqui, por uma questão de justiça em relação aos institutos de pesquisa, que muita informação analítica, notadamente em termos de clusters de eleitores, não chega ao conhecimento do grande público). Não obstante, cabe reconhecer que todas essas inciativas demandariam energia, tempo e dinheiro, o que é inviável em contexto frenético de publicações semanais de pesquisas. 

Minha avaliação quanto ao valor e interesse das pesquisas aqui aludidas sobrevive incólume às tentativas atuais de desacreditá-las, mesmo que concorde que procedimentos técnico-científicos SEMPRE podem passar por aperfeiçoamentos. Estamos agora no tempo do segundo turno das eleições para presidente e, em alguns casos, governadores neste país, e espero que venham novas pesquisas, devidamente registradas nas instâncias de controle estabelecidas em lei, e com informações importantes para toda a sociedade. Tais pesquisas trarão em seu bojo as mesmas limitações acima aludidas, mas nem por isso deixarão de ter seu espaço e seu valor. Viva ciência, o pensamento crítico, a honestidade intelectual e moral, o livre acesso à informação.



A quem se destina a ereção de um imbrochável?

Eis que, em plena comemoração cívico-fálico-militar do 7 de setembro último, na capital desta república brasilis, em que se comemorava o bicentenário do grito da independência proferido pelo representante da realeza da qual dependíamos, no contexto, repito, de tal comemoração, um coro de [supostos] imbrocháveis é engrossado pelo [suposto] imbrochável-mor, e todos, efusivamente, em compartilhamento viril, entoam “imbrochável!” / “imbrochável!” / “imbrochável!". 

O Dr. Sigmund Freud aludiu, em seus escritos, a algumas vias de emergência de pulsões inconscientes no âmbito da consciência, como seria o caso dos sonhos, dos chamados atos falhos, e do chiste (como foi traduzido o termo alemão para o espanhol e para o português). O chiste, que podemos tratar aqui, mais coloquialmente, como a piada, o duplo sentido, a metáfora e a ironia, são indubitavelmente atravessados por energia psíquica visível na risada, e mesmo na gargalhada que frequentemente desencadeiam. O chiste seria portador, segundo Freud, de impulsos profundos e de sentido para aquém do valor de face. 

E aí o que presenciei pela TV, no episódio a que me referi acima, me fez lembrar uma piada de gosto duvidoso, mas que me pareceu abrir caminho para um melhor entendimento do coro entoado na festa cívica. Eis a piada: um cara, do tipo ex-imbrochável, descobre a ajuda farmacológica azul do Viagra, e eis que se lhe advém uma daquelas ereções dignas dos atores de filmes pornô; a pessoa com quem convivia, diante daquele evento erétil tão especial, se anima e pergunta ao cara protagonista se seria o caso de, imediatamente, tirar proveito... Eis então que o cara-protagonista responde prontamente que NÃO, de jeito nenhum - ele, ao invés disso, iria para a birosca da esquina, exibir orgulhosamente sua ereção para os parças! 

Isso nos remete à pergunta que abre essa tosca reflexão antropológico-psicanalítica. A imbrochabilidade aparece, na cena aludida, como um adereço de “viris” para “viris”, em última análise um “affaire d’hommes”, cujos destinatários são os parças, e não uma outra pessoa investida de afeto e/ou tesão real. A ênfase instrumental na ereção do/pelo imbrochável alude, tragicamente, a uma fixação fálico-narcísica que perde de vista a finalidade última da libido, que é o encontro de pessoas via compartilhamentos os mais variados - dentre os quais a penetração. Depois de orgulhosamente exibir aos parças o membro ereto como os canhões do desfile, tomara que cada um desses imbrocháveis evolua no sentido de descobrir, pós-infância psíquica tardia, com quantos [e quais] paus se faz uma canoa - para terminar em tom de chiste...

Round 6 como metáfora naturalizadora do Darwinismo Social contemporâneo

 Eis que surge no horizonte de debates de um de meus grupos web de cinéfilos o já blockbuster Round 6 (https://g.co/kgs/aGMJ3A), produção de outro fenômeno mundial em ascenção (thanks COVID-19), a Netflix. Vi o primeiro episódio e fiquei espantado com o caráter tóxico da proposta. Achei que, até para firmar uma posição minimamente informada, seria necessário pelo menos percorrer outro(s) episódios. No momento em que organizo essa reflexão para mim e para os que me derem o cabimento da leitura, estou lá por volta de pouco mais da metade da série de 9 episódios, mas acho que já basta. 

Desde logo asseguro que meu problema com a série não foi a quantidade de hemoglobina livre - eu que sou fã de Quentin Tarantino, onde artérias rompidas a golpes de katana by Hattori Hanzo jorram tanto sangue que as vezes o box doméstico de recepção de streaming precisa passar por uma hemoaspiração. Qual a questão, então? Vamos ao básico, ao central, ao crucial. Qual é o princípio basilar da CIVILIZAÇÃO que emerge com o Iluminismo, esse que busca apoio nas ideias de coletivo, comunidade, cidadania, coisa (res)pública, democracia, estado de direito, tudo desaguando nos direitos de cidadania? Esse princípio é aquele segundo o qual cada ser humano, por essa simples condição, tem o que alguns chamam de “direito natural” (não gosto do termo, mas vou resistir à tentação da digressão aqui), ou direito de cidadania (citoyenneté), ou direito humano de manter-se vivo, graças ao atendimento de necessidades inalienáveis como a alimentação, o alojamento, a educação, a saúde, a justiça. Associado a esse principio vem um outro que é crucial, e que até antecede o momento histórico do Iluminismo, pois remete à ideia de contrato social  que tem acompanhado a espécie humana desde que dois caçadores-coletores, graças à intermediação de algum sistema de representação linguageira, puderam combinar alguma coisa entre eles. Por esse princípio do contrato estabelecido, nossos ancestrais conseguiram certa economia de energia (além de algum aumento da expectativa de vida no grupo...) - o usufruto das águas de determinado riacho é compartilhado por dois grupos porque se combinou isso, sem necessidade de, a cada coleta de água, os envolvidos se engalfinharem para decidir quem finalmente levaria água para casa. Em decorrência, eu homem primitivo, passo a conseguir encher meu balde de água não por conta do meu muque, combinado à minha cara assustadora e meu tacape-tronco, e sim por conta de um acordo vigente! É claro que, aqui e ali, havia derrapagens, com retornos aos tacapes, cabeças partidas, baldes usurpados e muita gente morta, mas isso, ao longo da história, começou a se mover na direção de eventos de crise entre tempos de entente. Viva! 

Passamos por esse processo histórico civilizatório, mas o homem persiste o lobo de si próprio, não só em termos de recaídas tipo “meu tacape na tua cabeça” como ultima ratio, mas em termos mesmo da montagem de narrativas pretensamente elegantes, redigidas em gênero textual acadêmico, narrativas essas que solapam princípios civilizatórios baseados em princípios assentidos, assumidos, combinados e estabelecidos, em favor do ancestral princípio da lei do mais forte. A lei é igual para todos mas é “mais igual” para alguns; ser pobre se explica em função de uma “cultura da pobreza” e incompetência a ela relacionada; apenas os mais fortes sobrevivem (ou deveriam sobreviver...); óbito também é uma forma de alta médica (notadamente para idosos e outros pouco viáveis...) - essa é recente...; pessoas com necessidades especiais são um estorvo a evitar por parte do coletivo. Eis-nos diante do Darwinismo Social.
Não é caso de nos estendermos aqui sobre o próprio conceito de Darwinismo Social - ele próprio uma importação teórico-conceitual a partir da Biologia Evolucionária Darwinista rumo às ciências político-sociais, economia, ciências jurídicas e gestão pública. A conversa aqui era sobre o pretenso caráter tóxico da série Round 6, e meu Grilo Falante já me adverte que o texto já está bem grandinho... Por hora, que fique estabelecida a seguinte linha de raciocínio: tão violento quanto o comportamento da milícia de periferia, ou do grupo faccionado que administra (de fato) uma prisão do Estado, é a defesa do princípio segundo o qual determinados direitos se assentam em algum tipo de superioridade objetivamente estabelecida. Os racismos estão a um passo, naturalmente. As limpezas étnicas. A eugenia. O direito/dever de descartar os fracos para o bem de um grupo remanescente de fortes, portanto mais forte. O direito/dever de dar a toda e qualquer rationale contrária a esse princípio o caráter de mimimi, associado ao insuportável “politicamente correto”, atraso mental esquerdizante. Em suma: trata-se aqui do direito do mais forte como o direito natural por excelência - até porque encontra na própria natureza, em termos de uma de suas leis mais importantes (a Evolução das Espécies via seleção natural), o seu respaldo último. Eu tenho direito de dar um tiro na sua cara porque você é fraco, e por ser fraco, você perdeu.  

Bertolt Brecht, uma das referências maiores da dramaturgia contemporânea, chamava a atenção para o poder do teatro e da teatralização como fonte de “vivência psicossocial vicária” para a plateia - um faz de conta que nos proporciona um gozo real. Round 6 é tóxico porque oferece a experiência de distribuir tiros a rodo para aqueles que perdem. Porque a condição fundamental para permanecer vivo é ganhar - e não ter um tal de direito humano à vida, em si e por si. Os jogos notabilizados pela série (todos inocentes joguinhos de criança...) metaforizam os diversos desafios e demandas da vida, e desmetaforizam as situações em que nós, quando crianças, gritávamos para os amiguinhos e amiguinhas perdedores “VOCÊ MORREU!!!”. Na série, uma voz parecida com essas vozes de aeroportos e repartições públicas recita em idioma coreano, sem qualquer emoção, logo após o disparo de um tiro de revólver:  “candidato número x - eliminado” ...  

O cinema e o teatro são tóxicos na medida em que naturalizam situações que deveriam passar por crivo crítico, para o bem do Estado, para o bem dos indivíduos. O princípio segundo o qual only the strongest survive representam uma dessas situações, acompanhada inclusive da mensagem subliminar segundo a qual numa sociedade que passa numa imensa máquina de moer carne aqueles em dívida bancária, aqueles sem meios de consumo (desempregados), aqueles adoecidos e sem seguro-saúde, numa sociedade assim, a saída é “jogar”, mesmo em se tratando de um jogo em completa oposição em relação aos princípios mais básicos dessa tal de Civilização Contemporânea. Jogar, tudo considerado, é a saída conservadora, individualista e conformista por excelência. Um dos personagens diz, numa das cenas, logo no início: “Nesses jogos há pelo menos uma chance de ganhar alguma coisa, diferentemente do que se passa lá fora, em que não há esperança nenhuma”. Uma possibilidade de escape crítico dessa essa falsa dicotomia fica tão abstrata quanto a terceira margem de um rio.