sexta-feira, 30 de outubro de 2015

APRENDIZAGENS: em honra aos 60 anos do Instituto Capibaribe


O que pretendo trazer aqui à consideração de vocês, nessa mesa, resulta da conversa interna entre um conceito central em minha vida de pesquisador que pensa e pesquisa sobre aprendizagem, o conceito vygotskiano de vivência, tradução dificultosa do termo russo perezhvanie,  e tudo que pude aprender sobre aprender, no tempo do Instituto Capibaribe. São vivências que quero compartilhar aqui, com vocês. Continuo uma conversa que iniciei já há 10 anos atrás, quando da edição do livro comemorativo dos 50 anos do IC, para o qual tive a honra de contribuir com depoimento escrito. Essa conversa interna me constituiu e constitui todo o tempo, e foi em função dessa conversa que dediquei meu trabalho inicial de tese, em meu Diploma de Estudos Aprofundados, na Universidade de Paris 5, a Raquel Correa de Crasto. Meu orientador, à época, perguntou, curioso quem era aquela pessoa; eu respondi, misterioso, que havia sido uma antecessora dele... Ele até hoje deve imaginar trata-se de alguma acadêmica brasileira, em algum mestrado prévio... Mal sabia que a dimensão dessa antecessora havia sido muitíssimo maior! A lembrança e homenagem a Dona Raquel não havia sido por acaso; ao iniciar o doutorado, me senti perigosamente ameaçado por um contexto que não conhecia, uma língua que não era a minha, um desafio que parecia enorme; naquela ocasião, mesmo as máquinas de lavar roupa de aluguel, na residência universitária onde residi na chegada, pareciam dispositivos inextricáveis e complicadíssimos, que me faziam pensar, desolado: “alguém que não consegue sequer lavar as próprias roupas sujas numa porcaria de uma máquina de lavar, como poderá fazer um doutorado, ainda mais em língua francesa?” Vivência que já era minha conhecida:  anos atrás, na chegada ao Capibaribe, vindo de experiência escolar absolutamente desastrosa, analfabeto quando todos já haviam aprendido a ler, estrangeiro num mundo adulto distante, marginal num mundo infantil hostil, aquela escola da Avenida Malaquias parecia mais uma comarca inatingível de um país de frustração e desamparo que se constituía para mim. Na chegada à Sorbonne, uma secretária cinza me havia advertido que, naquela universidade, não se faziam favores a estrangeiros;  na chegada ao IC,  os coleguinhas me saudaram com a advertência de que naquela escola todos deveriam fazer primeira comunhão, mas analfabetos estavam fora – destinados ao inferno por conta de sua incompetência ignara e pecadora.  Em Paris, logo após o choque das primeiras experiências assustadoras, uma voz tranquila enraizada em vivências do passado sussurrou ao meu ouvido que o desafio, ali, como das outras vezes, seria sobretudo encontrar o meu próprio caminho para aquela trilha: nem se submeter aos projetos de outros, nem sucumbir ao vazio do vácuo de qualquer projeto.  Como na Avenida Malaquias, onde a Dona da Voz sussurrou ao meu ouvido o convite inesperado para acompanhá-la na preparação do jornalzinho da escola – jornalzinho que tinha um patrono - São Domingos Sávio (discípulo de São João Bosco) – sobre quem, um dia, eu poderia ler, quando pudesse ler, e se quisesse saber; enquanto isso, iríamos produzir textos escritos... em deliciosos mimeógrafos a álcool. Assim se iniciou minha trajetória de apego ao texto escrito no Instituto Capibaribe: da forma como pude iniciá-la, como auxiliar de produção de texto mimeografado cujo significado cifrado desconhecia, mas em meio à magia de se apaixonar por um jornalzinho escolar mesmo antes de entender uma mísera linha do que ali se escrevia. Em Paris, exatos 365 dias após a chegada assustadora, texto de exame pronto, caminho pessoal iniciado, dedicatória a Raquel inserida, voltei aos 365 dias após a chegada ao IC, então na condição de diretor de edição do jornalzinho, e sob a proteção de Domingos Sávio e de Dona Raquel. O quão bem produzia e consumia texto, não sabia e hoje não me recordo: tudo que recordo foi o quanto foi tardio – último dos meninos de minha turma a se alfabetizar, ritmo próprio nesse processo, analfabeto inclusive durante a primeira comunhão – Dona Raquel me havia tranquilizado, rindo à solta da tentativa de bullying dos coleguinhas que me haviam garantido que o padre iria me pedir para abrir o missal à página x, e ler o que estava lá – se não lesse, nada de óstia e nem de primeira comunhão! Conforme Dona Raquel havia assegurado, todos comungaram, apesar de só um menino magrinho, dentre todos, ter comungado feliz, e analfabeto. A defesa do texto de exame em Paris, que os coleguinhas haviam preconizado como de difícil sucesso mesmo para os nativos  - melhor pedir logo para fazer o exame ao final do segundo ano – me parecia possível, porque havia aprendido antes que um caminho era sempre possível de trilhar quando o caminho era o seu; e que aquela óstia de primeira comunhão doutoral estaria sim a meu alcance, primeiro porque eu a queria muito, e segundo porque eu iria encarar aquela empreitada do meu jeito, e sob a égide de Domingos Sávio e Raquel. Meu privilégio...
Vivência, para Lev Vygotski, diz respeito à experiência acumulada do vivido, peculiar a cada um e necessariamente atravessada por acervo de emoções e afetos. Vivência, para mim, é a unidade de análise da psicologia, qualquer que seja o adjetivo que a acompanha: do desenvolvimento, do trabalho, da aprendizagem. Vivência diz respeito à integração biográfica entre passado, presente e futuro, e à integração entre racionalidade e afetividade. Aprender é fundamental, mas aprender, como vivência, traz sempre em si, embutida, a meta-experiência de aprender a aprender. Tal experiência tem como cerne a competência, discutida pelo Círculo Bakhtin em termos de estilização, no sentido de construir um caminho próprio. Aprendi com Raquel o apego afetuoso ao texto escrito através do enfeitiçamento da pequena oficina na labuta do mimeógrafo a álcool – em meio à tranquilidade, ao respeito, ao carinho por um garotinho desvalido e em risco – fora dos padrões, mas pronto a se apegar – à escola, ao aprender, ao assumir o direito de fazer valer sua diferença, viver com ela, e não apesar dela. Vygotski, ao refletir sobre crianças diferentes, ou “feitas de outra maneira” – portanto caracterizadas por um defectus – donde a Defectologia russa, chama a atenção para o fato de que elas são crianças tão humanas quanto qualquer outra, apesar de portarem peculiaridades como poucas, e olhando de perto, como nenhuma outra. Raquel sabia “querer bem a todos, querendo o bem de todos”(pg. 25 dos Cinquenta Anos Depois), e sobretudo “respeitar o estilo e o arranjo pessoal” (pg. 27), convicta da importância dessa postura para formar pessoas integrais, ao invés de formatar ovelhas – eventualmente enviando-as direto para o abatedouro. Escrevi em meu texto de 2005 que o Capibaribe sempre soube acolher patinhos feios, e não necessariamente para transformá-los em cisnes (apesar de alguns, efetivamente, terem desenvolvido belas plumagens), mas para oferecer a cada um deles um laguinho onde fosse possível nadar, onde fosse possível se afeiçoar a nadar: eis aí o cerne das vivências de quem passou por essa escola tão pequena em valor material, tão especial na escala inefável que avalia as vivências.
Sempre me assombrou, pela vida afora, a constatação retrospectiva de uma certa familiaridade vivencial de Dona Raquel, com construtos teóricos do estado da arte da teorização em psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, minha área de formação doutoral. De Jean Piaget a Emilia Ferreiro, passando por Anita Paes Barreto e Paulo Freire, de Lev Vygotski a Jerome Bruner, passando por Mikhail Bakhtin e seu círculo de colaboradores. Mais de uma vez conversei sobre esse meu assombro com o prof Paulo Rosas, um dos meus formadores na Psicologia UFPE, a quem aproveito para igualmente reverenciar aqui. Recentemente, em evento acadêmico em Paris, um dos conferencistas, Pablo Del Rio,  disse uma frase que imediatamente me trouxe Dona Raquel; ele disse: “há pessoas que falam como livros, há livros que falam como pessoas, e há pessoas que trazem a sabedoria dos livros em seu discurso e em sua prática profissional, mesmo que não citem os livros, e mesmo que, misteriosamente, nem sequer os tenham lido.” Lembraram de alguém?
Para além da ênfase absolutamente contemporânea na integração dos aspectos cognitivos e afetivos nos contextos de ensino e aprendizagem (tema aliás de uma fala que ofereci ao professorado do Instituto Capibaribe em 2004, a convite da direção pedagógica), numa época em que muitas correntes de peso da psicologia e da pedagogia tratavam esses aspectos como separáveis, e da ênfase no respeito às peculiaridades dos alunos, não para lhes conceder privilégios especiais na comunidade-escola, mas lhes respeitar direitos inalienáveis, Dona Raquel trouxe igualmente contribuições específicas na lide com os conteúdos escolares específicos – isso com que até hoje lutamos, ao propor, primeiro, os Parâmetros Curriculares Nacionais, e agora a Base Nacional Comum Curricular. O que digo sobre isso, digo não com base na leitura de textos de orientação de Raquel, apesar de ter visitado os bastidores desse mundo em que fui aluno, ao ler as anotações do 50 Anos Depois... Digo com base, mais uma vez, na vivência de quem passou quase um ano sacrificando os domingos de praia para ir à casa humilde e acolhedora de Dona Raquel, no bairro de Campo Grande, para aulas suplementares de Português e Matemática, em preparação para um futuro chamado Ginásio de Aplicação (mais histórias, mais vivências...). Mais uma vez, como tantas vezes, a avaliação pessoal era de completa impotência para conseguir acesso àquele colégio de nerds – logo eu, até bom em Português, mas definitivamente problemático no domínio das Matemáticas – como ter essa pretensão? Raquel acolheu essa postura com um ponche de laranja – lembram que em nossa infância tomávamos ponche? Ponche de laranja com bolacha cream-cracker – o lanche que acompanhou, em sua simplicidade franciscana, todo aquele período de formação suplementar. Ponche e aquele jeito Raquel de ser – la force tranquille, como diriam os franceses. Aquela certeza de que, mais uma vez, haveríamos de construir um caminho, o meu caminho. Certa vez, numa das jornadas dominicais de Campo Grande, diante de uma expressão numérica aterradora (chamávamos de “carroção”), com barra fracionária, parênteses, chaves e colchetes e tudo o mais que se pudesse imaginar, e que eu deveria simplificar, olhei desamparado para Dona Raquel, e aí ela me segredou uma fórmula que me acompanhou muitos anos depois, em minhas pesquisas já no domínio da resolução de problemas e da passagem da aritmética à álgebra: “esses problemas são como papa, a gente começa comendo pelas bordas...” Mais tarde ouvi o russo naturalizado americano George Polya discorrer em “How to Solve It” sobre a sofisticação da estratégia do “means and ends analysis” , que vem a ser justamente comer um problema complexo (matemático, econômico, existencial...) pelas bordas – o que tem a estratégica característica de não garantir que o problema seja resolvido de uma tacada – ele lhe leva a um problema cada vez menor, somente isso; e de menor em menor, ele fica do meu tamanho – Eureka!
O que cada aluno dessa escola toda vida lembrará, com base nas vivências fundadoras de cada um no Instituto Capibaribe, é que aprender é bom, é prazeroso e é autoral; aprender é trazer para si e reinventar, aprender é receber os tesouros dos que nos precederam, e dar a esses tesouros o valor adicional do estilo pessoal; valor adicional que não tem necessariamente medida clara e objetiva, na direção do desempenho, do achievement tão caro a certas perspectivas anglófonas de educação; já na condição de pai de aluno do IC, quantas e quantas vezes ouvi em nossas reuniões de pais e mestres a pergunta angustiada de outros pais: “aqui nessa escola meu filho até está indo até bem, ele gosta da escola e tudo, mas ele vai conseguir se dar bem lá fora, noutras escolas, quando sair daqui? Ele estará equipado para a  vida real, fora desse jardim protegido?” O IC gerou um paradigma em Recife, e mesmo fora de Recife: meus filhos pequenos frequentam em Natal, onde hoje residimos, uma escola que é a “cara” do IC, e que atende pelo sugestivo nome de “Casa Escola” – sentiram o clima? Pois muito bem, a pergunta permanece, tantos anos depois... Os pais vêem os filhos felizes na escola, lembram do tanto de porrada que levaram em suas experiências escolares, e se perguntam, fiéis à tradição judaico-cristã de progresso via penitência: “é possível atingir o bom desempenho sem sofrência escolar? ”  Eu, do meu canto, pela enésima vez respondo que basta dar uma olhadinha nos egressos... Sem grandes circunlóquios sobre o valor da perspectiva construtivista, etc e tal. Olhem os egressos...
O que os egressos do Instituto Capibaribe, hoje com filhos, netos, bisnetos, e vamos que vamos, o que esses egressos toda vida lembrarão é de uma etapa da vida em que se consolidaram como pessoas. Aqueles dentre os egressos que se encaminharam para as lides pedagógicas levarão um acervo de vivências focadas no rigor, na seriedade profissional do ser mestre, no estudo constante, no carinho imenso ao ofício e ao educando. E mesmo aqueles que, mais prosaicamente, admitam não ter histórias muito especiais a contar, esses também se juntarão a todos os demais, posto que todos têm seu lugar nessa foto, todos tiveram o privilégio de compartilhar a vivência de uma escola que para sempre em nossas almas ficará.
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ADENDO acrescentado após ver o vídeo produzido para a apresentação, como parte do programa, na emocionante cerimônia do Teatro Beberibe, em que uma das depoentes, ex-aluna do IC, lembrava um dos motes da escola: “Aqui a gente pode tudo...”. Isso me trouxe mais uma vivência, que compartilho abaixo.
Clinica Pinel, véspera de Natal de 1980. Eu no plantão, co-responsável pela Unidade Freud de mais ou menos 50 pacientes do sexo masculino,  a maior parte psicóticos, e com baixa dosagem média de medicação, como era a tradição na clínica. Por volta das 21hs sou chamado à unidade, um paciente que me ver.
Eu: Olá, gostaria de falar comigo?
Ele: Sim, gostaria. Aqui nessa clínica vocês dizem que a gente tem ampla liberdade, mas a gente não pode nada.
Eu: E o que você gostaria muito nesse momento?
Ele: O que gostaria muito, nem vou falar, pois sei que não haveria a menor possibilidade de ser atendido. Vou falar somente o que gostaria, assim, de boa.
Eu: Diga!
Ele: Gostaria de que hoje a regra do silêncio das 22hs fosse suspensa, e que a gente tivesse direito a um recital de música sacra com o primeiro violino da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.
Eu: Vamos consultar os demais pacientes – se eles concordarem, eu vou autorizar. Quanto ao recital... Como fazer para conseguir o violinista?
Ele: Fácil, sou eu.
Eu: [pensamento paralelo: acionar princípio técnico de como lidar com delírios; não escarnecer, não confrontar – aceitar sem se associar ao delírio, etc...] – Vamos ver... Primeiro vamos tratar da aceitação de sua proposta pelos demais pacientes... [Ganhar tempo...]
20 minutos depois, pacientes todos de acordo, volto à unidade para tratar do encaminhamento da produção delirante, e ao comunicar ao meu interlocutor que a primeira parte da demanda estava contemplada, ele vai a seu armário, retira um violino, senta-se com todos os pacientes ao redor, e inicia uma belíssima sonata de Natal, em meio a muita emoção. Nem precisei conferir depois (mas confesso que o fiz) que ele era, efetivamente, o primeiro-violino da Sinfônica de Porto Alegre.
Ao final da noitada, todos se recolhendo, ele me diz: O senhor sabe, nessa vida, em canto nenhum a gente pode tudo; mas a gente pode muito quando há boa vontade e boa conversa!
Era sempre assim no Instituto Capibaribe: a gente de fato não podia tudo, mas a gente conversava tudo e sempre - e findava podendo muito!