“Se você tem uma ideia incrível é
melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão”
Está provado que só é possível filosofar em alemão”
No day after do desastre de nossa
seleção de futebol no Mineirão, que agora ocupa lugar histórico ao lado do desastre
no Maracanã na Copa do Mundo de 1950, um dos piores subprodutos é o retorno de nosso
demônio cultural de estimação – o demônio que remonta ao momento exato em que
europeus puseram os pés nessas terras e inauguraram a confrontação entre
autóctones e reinóis. Esse demônio nos tem tentado há 500 anos a achar que a
felicidade, o progresso e, em última análise, a civilização estão
sistematicamente alhures, a depender do europeu-invasor de ocasião: Portugal, França, Inglaterra, Holanda.
Neste último caso – o dos holandeses -
bem familiar a nós pernambucanos, muitas vozes da historiografia local
insistem em registrar que o vilarejo de Nova Amsterdã fundado em terras
norte-americanas pelos holandeses expulsos de terras pernambucanas em 1648, daria
origem anos depois a... New York. Se Nova Amsterdã gerou New York, Mauritsstadt
(depois Recife) teria gerado algo parecido, caso os holandeses tivessem
ficado... E por aí vai, com exemplos do pós-guerra baseados em leituras pouco
rigorosas da imigração japonesa e européia para o Brasil, conducentes à
representação social renitente de uma cultura brasileira irremediavelmente periférica e
incompetente, magistralmente denominada de “complexo de vira-lata” por Nelson
Rodrigues.
O tal complexo de vira-lata
voltou com força com o 7 x 1 que a seleção alemã de futebol nos impingiu em
nossa terra, nossa copa, nossa festa, sob nossas ventas. A supremacia
futebolística teria sido apenas consequência natural de supremacia cultural: lá
onde improvisamos, eles planejam; onde tergiversamos, eles focam; onde
enrolamos, eles treinam. O massacre do Mineirão metaforizou certa soberania que
habita o subconsciente histórico-cultural brasileiro desde que os Tupinambás
provaram carne européia e a acharam de qualidade superior.
O problema não está em
constatar que os alemães efetivamente treinaram há mais tempo e mais
eficazmente que os brasileiros, e que eles jogaram melhor futebol que os
brasileiros: o escorregão fatal, muitas vezes não confessado ou não-consciente,
está em achar que eles treinaram melhor porque são alemães, e portanto ganharam
por serem alemães. A questão não é ganhar porque treina, é treinar porque é
alemão, e portanto finda ganhando. Eis, inteiro, nosso demônio.
Advogar que somos intrinsecamente
ótimos e recusar as lições dessa tragédia do Mineirão (que nos acompanhará durante décadas, haja vista a
vivacidade de 1950 no imaginário nacional até hoje) é de fato manifestação da
outra face de nosso demônio nacional: no fundo estamos condenados a essa
condição subalterna e amadora, vamos tirar proveito (canções ao invés de
filosofia) e superfaturar os episódios triunfantes aqui e ali, que afinal não
são poucos: somos pentacampeões, oras!
O caminho da evolução da
cultura e civilização brasileiras passa pela superação da ideia segundo a qual
trabalhamos mal por conta de nossa condição intrínseca de vira-latas
brasileiros. Trabalhamos mal por uma série de razões que cumpre trabalhosamente
apurar. E como trabalhamos mal! Em tantos e inúmeros domínios! Por outro lado,
não é condição do bom trabalho a pantomima do pó-de-arroz branqueador sobre
nossa natureza morena, não é finalmente a condição de boneco de ventríloquo no
colo de europeu que nos viabilizará.
Voltando ao domínio do
futebol, que ensejou esta reflexão – como ficamos? Qual a lição? A lição é que
origem nacional-cultural nos apetrecha com um conjunto de características que,
em si e por si, não nos levam a nada: nem para o bem, nem para o mal, nem para
o bom, nem para o ruim. Apenas nos dão identidade, história, filiação,
afinidades. O que cada um, cada grupo, cada período histórico vai fazer com sua
herança identitária é sempre tarefa em aberto, sujeita ao sucesso e ao
fracasso. Nesse contexto, está esgotada a idéia de que “nascemos com futebol no
sangue”, o que nos habilita ao sucesso: os alemães trituraram esse mito. Nosso
jeito de tratar a bola, que efetivamente existe, não o fim, é somente o começo:
tal como os alemães trabalharam eficazmente o jeito germânico deles tratarem a
bola, cabe-nos fazer o mesmo tanto com nosso jeito brasileiro de jogar.
Acredito piamente e ardentemente que nosso jeito é melhor e mais bonito, porque
afinal, não sou uma partícula achadora desconectada da história e da cultura:
sou brasileiro! Mas agradeço de coração aos alemães por terem mostrado com
tanta eficácia que a brasilidade, ou qualquer outra condição, não garantem o
paraíso.
Não perdemos por que somos
brasileiros vira-latas, assim como eles não ganharam por serem
pastores-alemães. Não se vive, em alemão, uma forma superior de vida: vive-se
apenas uma forma de vida tão boa quanto si própria.
Encontro marcado para a disputa da inédita medalha de ouro olímpica de
futebol, em terras brasileiras em 2016: vamos fazer valer a força da cultura
brasileira de forma semelhante àquela através da qual os alemães fizeram valer
a força da cultura germânica: pelo trabalho. E que vença o mais competente.