A questão da redução da maioridade penal é um
desses casos exemplares e históricos da sinergia perniciosa entre ignorância e
preconceito. Alguns aspectos precisam ser minimamente considerados no trato
dessa questão.
Para começo de conversa, é preciso admitir que as
condições de aprisionamento de qualquer animal não-humano em zoológicos,
biotérios e assemelhados são, no Brasil, infinitamente melhores que as
condições de aprisionamento no sistema brasileiro de prisões. Desde que passei
a participar, como pesquisador, do Observatório Nacional do Sistema Prisional (https://www.ufmg.br/ead/onasp/index.html
), não paro de me estarrecer com o que fazemos com a população carcerária deste
país - a terceira maior do mundo, em números absolutos ( cf. http://tinyurl.com/p354nar
). Os pouquíssimos dados de confiança de que dispomos apontam que a
"ressocialização"/ "recuperação" dos detentos egressos
dessas masmorras é pífio. Mas desconfio que isso não é fundamental para nossa
sociedade, pois de fato o que se deseja ao internar um preso é fundamentalmente
sua punição, mesmo sua trituração
como ser humano. A prisão é o lugar da vingança social - Lei de Talião com
juros. Não serão poucos aqueles que, ao ler estas mal-traçadas, reagirão à la
Malafaia com interpelações do tipo "quero
ver quando matarem um filho seu e o arrastarem pelo asfalto se você manterá
essa conversinha de bom-moço". A questão não passa pela negação da dor
alucinante do pai ou mãe que passa por uma tragédia dessas. A questão é que o
desejo de vingança em relação ao agente do crime hediondo não bate com as
diretrizes histórico-institucionais no Brasil e em muitos países ocidentais,
para os quais quem comete delito e é considerado culpado incorre em pena,
que tem a dupla função de punição social e
recuperação: em tese, quem cumpriu pena deveria poder voltar ao convívio social
plenamente re-habilitado em sua cidadania. Em tese, quem comete delito não
deixa de ser gente (teses devidamente dissecadas criticamente por Michel
Foucault, em "Vigiar e Punir:
Nascimento da Prisão" - disponível
em http://tinyurl.com/o7wp8ej
). No Brasil (e vamos ficar no Brasil), o sistema prisional, como
sistema, não recupera ninguém - ele mói carne e provê vingança social, alimenta
o crime organizado (nas prisões e fora delas), nada mais do que isso. Esse
texto poderia terminar aqui, como peça argumentativa contrária à redução da
maioridade penal. Mas poderia avançar mais um pouco, no terreno especulativo do
"e se o sistema prisional fosse
adequado" - o que remete à questão associada de "alguém de 16 anos sabe o que faz - tanto é
que vota para presidente da república, etc.". Três questões para
pensar, aqui: 1. O binômio histórico da reparação do crime e da oferta de condições de ressocialização ao delinquente
continua de pé? Ou o simples fato de que muitos delinquentes brasileiros não são
sequer socializados (então como poderiam ser "re" socializados?)
invalidaria essa premissa? 2. Se consideramos como incontornável (e TODOS
consideramos) a existência de um sistema social de justiça para lidar com
delitos, esse sistema deveria ser necessariamente fundado no cerceamento da
liberdade - na pena de aprisionamento? (Sugestão de leitura aqui: Sobre a reabilitação de criminosos: há
alternativa... à pena? Márcia Miranda, Editora Letra Capital). 3. Se
considerarmos que um indivíduo de 16, 15, 14 ou até 12 anos de idade tem
condições sócio-cognitivas de lidar com a noção de regra, delito e castigo, a
punição adequada em caso de delito cometido por parte desses jovens deveria ser
a restrição de liberdade - seja ela em padrão carcerário usual ou com adaptações-atenuantes
(como "cela especial", "cela em instituição especial",
etc)?
Alguns elementos de resposta às indagações acima: o
sistema prisional brasileiro, como bem reconheceu meses atrás o ministro da
justiça José Eduardo Cardozo ("Se fosse para cumprir
muitos anos na prisão, em alguns dos nossos presídios, eu preferiria morrer"
– cf. http://tinyurl.com/aafv5pd
), não é presentemente lugar para recuperar ninguém; por esse aspecto,
rebaixar a maioridade penal para enviar detentos jovens a partir dos 16 anos
para essas jaulas funciona fundamentalmente como vingança social – inclusive e
muito especialmente para os chamados crimes
hediondos. Vamos combinar isso. Se é de vingança que se trata, então que se
diga isso com todas as letras, e vamos lá. Mas SE estivéssemos no mundo virtual
de um sistema prisional minimamente decente, e fundado na pena do cerceamento
de liberdade, ainda assim o envio de jovens para o aprisionamento não seria o
caminho mais adequado para lidar com o delito e com o delinquente. E isso seria
tão mais pertinente quanto pertinente é pensar que essa constatação não é
válida somente para os jovens: é válida para qualquer delinquente, tenha ele a
idade que tiver. E aqui chegamos ao ponto central nessa discussão: a prisão,
enquanto pena de restrição da liberdade em cárcere, deveria ser prevista como UMA
opção no bojo do sistema de justiça, e
não como A opção dominante e modal, em detrimento de outras alternativas
eventualmente previstas nos códigos penais – como é o caso do nosso. Isso é
válido para quaisquer delitos, e para delinquentes em qualquer faixa etária. A
forma de lidar com um jovem de 16 anos que mata um médico respeitado e
produtivo, que passeia em sua bicicleta pelas margens da Lagoa Rodrigo de
Freitas, para roubar-lhe a bicicleta e o tênis, é uma questão de sociedade
inescapável (haverá ainda muitos e muitos outros médicos a chorar,
infelizmente). Pelo que tenho conseguido
ler até aqui em psicologia, educação e domínios afins, não há resposta fácil e
pronta para essa questão – com ressalva da minha própria ignorância. Mas de um
ponto estou certo e convicto: NÃO é pelo rebaixamento da maioridade penal,
inculpação e aprisionamento que se vai lidar com esse delito e com esse delinquente
– não como forma efetiva de punir e
recuperar.
Olhando diretamente em
seus olhos: caso você seja desses que decididamente não contém a revolta em
relação a determinados delitos e delinquentes (o que é compreensível,
psicologicamente), sejam eles maiores ou menores de idade, assuma de uma vez
sua recomendação de pena capital para esses delitos, ao invés da proposta de
aniquilamento paulatino da dignidade desses delinquentes nas jaulas do sistema
prisional brasileiro (exceto algumas Papudas aqui e ali, cujos detentos
“ordinários” serão sempre gratos ao companheiro José Dirceu).
Para
além do fuzilamento dos delinquentes – institucional ou não (providência corrente nas periferias desse
país), e do encarceramento (seja ele em condições humanas ou sub-humanas),
cabe-nos exercitar o esforço e a responsabilidade social de construir
alternativas que respeitem a juventude e a cidadania brasileiras, e preservem o
que nos resta de ideal civilizatório de sociedade. Que o Congresso Nacional se
incorpore a esse esforço, ao invés de cerrar fileiras com o atraso, o
preconceito, a preguiça mental e a barbárie.