O que pretendo trazer aqui à consideração de vocês, nessa mesa,
resulta da conversa interna entre um conceito central em minha vida de
pesquisador que pensa e pesquisa sobre aprendizagem, o conceito vygotskiano de vivência,
tradução dificultosa do termo russo perezhvanie, e tudo que pude aprender sobre aprender, no
tempo do Instituto Capibaribe. São vivências que quero compartilhar aqui, com
vocês. Continuo uma conversa que iniciei já há 10 anos atrás, quando da edição
do livro comemorativo dos 50 anos do IC, para o qual tive a honra de contribuir
com depoimento escrito. Essa conversa interna me constituiu e constitui todo o
tempo, e foi em função dessa conversa que dediquei meu trabalho inicial de
tese, em meu Diploma de Estudos Aprofundados, na Universidade de Paris 5, a
Raquel Correa de Crasto. Meu orientador, à época, perguntou, curioso quem era
aquela pessoa; eu respondi, misterioso, que havia sido uma antecessora dele...
Ele até hoje deve imaginar trata-se de alguma acadêmica brasileira, em algum
mestrado prévio... Mal sabia que a dimensão dessa antecessora havia sido
muitíssimo maior! A lembrança e homenagem a Dona Raquel não havia sido por
acaso; ao iniciar o doutorado, me senti perigosamente ameaçado por um contexto
que não conhecia, uma língua que não era a minha, um desafio que parecia
enorme; naquela ocasião, mesmo as máquinas de lavar roupa de aluguel, na
residência universitária onde residi na chegada, pareciam dispositivos
inextricáveis e complicadíssimos, que me faziam pensar, desolado: “alguém que não consegue sequer lavar as
próprias roupas sujas numa porcaria de uma máquina de lavar, como poderá fazer
um doutorado, ainda mais em língua francesa?” Vivência que já era minha
conhecida: anos atrás, na chegada ao
Capibaribe, vindo de experiência escolar absolutamente desastrosa, analfabeto
quando todos já haviam aprendido a ler, estrangeiro num mundo adulto distante,
marginal num mundo infantil hostil, aquela escola da Avenida Malaquias parecia
mais uma comarca inatingível de um país de frustração e desamparo que se
constituía para mim. Na chegada à Sorbonne, uma secretária cinza me havia
advertido que, naquela universidade, não se faziam favores a estrangeiros; na chegada ao IC, os coleguinhas me saudaram com a advertência
de que naquela escola todos deveriam fazer primeira comunhão, mas analfabetos
estavam fora – destinados ao inferno por conta de sua incompetência ignara e
pecadora. Em Paris, logo após o choque
das primeiras experiências assustadoras, uma voz tranquila enraizada em
vivências do passado sussurrou ao meu ouvido que o desafio, ali, como das
outras vezes, seria sobretudo encontrar o meu próprio caminho para aquela
trilha: nem se submeter aos projetos de outros, nem sucumbir ao vazio
do vácuo de qualquer projeto. Como na
Avenida Malaquias, onde a Dona da Voz sussurrou ao meu ouvido o convite
inesperado para acompanhá-la na preparação do jornalzinho da escola – jornalzinho
que tinha um patrono - São Domingos Sávio (discípulo de São João Bosco) – sobre
quem, um dia, eu poderia ler, quando pudesse ler, e se quisesse saber; enquanto
isso, iríamos produzir textos escritos... em deliciosos mimeógrafos a álcool.
Assim se iniciou minha trajetória de apego ao texto escrito no Instituto
Capibaribe: da forma como pude iniciá-la, como auxiliar de produção de texto
mimeografado cujo significado cifrado desconhecia, mas em meio à magia de se
apaixonar por um jornalzinho escolar mesmo antes de entender uma mísera linha
do que ali se escrevia. Em Paris, exatos 365 dias após a chegada assustadora,
texto de exame pronto, caminho pessoal iniciado, dedicatória a Raquel inserida,
voltei aos 365 dias após a chegada ao IC, então na condição de diretor de edição
do jornalzinho, e sob a proteção de Domingos Sávio e de Dona Raquel. O quão bem
produzia e consumia texto, não sabia e hoje não me recordo: tudo que recordo
foi o quanto foi tardio – último dos meninos de minha turma a se alfabetizar,
ritmo próprio nesse processo, analfabeto inclusive durante a primeira comunhão
– Dona Raquel me havia tranquilizado, rindo à solta da tentativa de bullying
dos coleguinhas que me haviam garantido que o padre iria me pedir para abrir o
missal à página x, e ler o que estava lá – se não lesse, nada de óstia e nem de
primeira comunhão! Conforme Dona Raquel havia assegurado, todos comungaram,
apesar de só um menino magrinho, dentre todos, ter comungado feliz, e
analfabeto. A defesa do texto de exame em Paris, que os coleguinhas haviam
preconizado como de difícil sucesso mesmo para os nativos - melhor pedir logo para fazer o exame ao
final do segundo ano – me parecia possível, porque havia aprendido antes que um
caminho era sempre possível de trilhar quando o caminho era o seu; e que aquela
óstia de primeira comunhão doutoral estaria sim a meu alcance, primeiro porque
eu a queria muito, e segundo porque eu iria encarar aquela empreitada do meu
jeito, e sob a égide de Domingos Sávio e Raquel. Meu privilégio...
Vivência, para Lev Vygotski, diz
respeito à experiência acumulada do vivido, peculiar a cada um e
necessariamente atravessada por acervo de emoções e afetos. Vivência,
para mim, é a unidade de análise da psicologia, qualquer que seja o adjetivo
que a acompanha: do desenvolvimento, do trabalho, da aprendizagem. Vivência
diz respeito à integração biográfica entre passado, presente e futuro, e à
integração entre racionalidade e afetividade. Aprender é fundamental, mas
aprender, como vivência, traz sempre em si, embutida, a meta-experiência de
aprender a aprender. Tal experiência tem como cerne a competência, discutida
pelo Círculo Bakhtin em termos de estilização, no sentido de construir
um caminho próprio. Aprendi com Raquel o apego afetuoso ao texto escrito
através do enfeitiçamento da pequena oficina na labuta do mimeógrafo a álcool –
em meio à tranquilidade, ao respeito, ao carinho por um garotinho desvalido e
em risco – fora dos padrões, mas pronto a se apegar – à escola, ao aprender, ao
assumir o direito de fazer valer sua diferença, viver com ela, e não apesar
dela. Vygotski, ao refletir sobre crianças diferentes, ou “feitas de outra
maneira” – portanto caracterizadas por um defectus – donde a Defectologia
russa, chama a atenção para o fato de que elas são crianças tão humanas quanto
qualquer outra, apesar de portarem peculiaridades como poucas, e olhando de
perto, como nenhuma outra. Raquel sabia “querer
bem a todos, querendo o bem de todos”(pg. 25 dos Cinquenta Anos Depois), e sobretudo “respeitar o estilo e o arranjo pessoal” (pg. 27), convicta da
importância dessa postura para formar pessoas integrais, ao invés de formatar
ovelhas – eventualmente enviando-as direto para o abatedouro. Escrevi em meu
texto de 2005 que o Capibaribe sempre soube acolher patinhos feios, e não necessariamente
para transformá-los em cisnes (apesar de alguns, efetivamente, terem
desenvolvido belas plumagens), mas para oferecer a cada um deles um laguinho
onde fosse possível nadar, onde fosse possível se afeiçoar a nadar: eis
aí o cerne das vivências de quem passou por essa escola tão pequena em valor
material, tão especial na escala inefável que avalia as vivências.
Sempre me assombrou, pela vida afora, a constatação retrospectiva de
uma certa familiaridade vivencial de Dona Raquel, com construtos teóricos do
estado da arte da teorização em psicologia da aprendizagem e do
desenvolvimento, minha área de formação doutoral. De Jean Piaget a Emilia
Ferreiro, passando por Anita Paes Barreto e Paulo Freire, de Lev Vygotski a
Jerome Bruner, passando por Mikhail Bakhtin e seu círculo de colaboradores. Mais
de uma vez conversei sobre esse meu assombro com o prof Paulo Rosas, um dos
meus formadores na Psicologia UFPE, a quem aproveito para igualmente
reverenciar aqui. Recentemente, em evento acadêmico em Paris, um dos
conferencistas, Pablo Del Rio, disse uma
frase que imediatamente me trouxe Dona Raquel; ele disse: “há pessoas que falam
como livros, há livros que falam como pessoas, e há pessoas que trazem a sabedoria dos livros em seu discurso e em sua
prática profissional, mesmo que não citem os livros, e mesmo que,
misteriosamente, nem sequer os tenham lido.” Lembraram de alguém?
Para além da
ênfase absolutamente contemporânea na integração dos aspectos cognitivos e
afetivos nos contextos de ensino e aprendizagem (tema aliás de uma fala que
ofereci ao professorado do Instituto Capibaribe em 2004, a convite da direção
pedagógica), numa época em que muitas correntes de peso da psicologia e da
pedagogia tratavam esses aspectos como separáveis, e da ênfase no respeito às
peculiaridades dos alunos, não para lhes conceder privilégios especiais na
comunidade-escola, mas lhes respeitar direitos inalienáveis, Dona Raquel trouxe
igualmente contribuições específicas na lide com os conteúdos escolares
específicos – isso com que até hoje lutamos, ao propor, primeiro, os Parâmetros
Curriculares Nacionais, e agora a Base Nacional Comum Curricular. O que digo
sobre isso, digo não com base na leitura de textos de orientação de Raquel,
apesar de ter visitado os bastidores desse mundo em que fui aluno, ao ler as
anotações do 50 Anos Depois... Digo com base, mais uma vez, na vivência de quem
passou quase um ano sacrificando os domingos de praia para ir à casa humilde e
acolhedora de Dona Raquel, no bairro de Campo Grande, para aulas suplementares
de Português e Matemática, em preparação para um futuro chamado Ginásio de
Aplicação (mais histórias, mais vivências...). Mais uma vez, como tantas vezes,
a avaliação pessoal era de completa impotência para conseguir acesso àquele
colégio de nerds – logo eu, até bom em Português, mas definitivamente
problemático no domínio das Matemáticas – como ter essa pretensão? Raquel
acolheu essa postura com um ponche de laranja – lembram que em nossa infância
tomávamos ponche? Ponche de laranja com bolacha cream-cracker – o lanche que
acompanhou, em sua simplicidade franciscana, todo aquele período de formação
suplementar. Ponche e aquele jeito Raquel de ser – la force tranquille, como diriam os franceses. Aquela certeza de
que, mais uma vez, haveríamos de construir um caminho, o meu caminho. Certa vez, numa
das jornadas dominicais de Campo Grande, diante de uma expressão numérica
aterradora (chamávamos de “carroção”), com barra fracionária, parênteses,
chaves e colchetes e tudo o mais que se pudesse imaginar, e que eu deveria
simplificar, olhei desamparado para Dona Raquel, e aí ela me segredou uma
fórmula que me acompanhou muitos anos depois, em minhas pesquisas já no domínio
da resolução de problemas e da passagem da aritmética à álgebra: “esses problemas são como papa, a gente
começa comendo pelas bordas...” Mais tarde ouvi o russo naturalizado
americano George Polya discorrer em “How to Solve It” sobre a sofisticação da
estratégia do “means and ends analysis” , que vem a ser justamente comer um
problema complexo (matemático, econômico, existencial...) pelas bordas – o que
tem a estratégica característica de não garantir que o problema seja resolvido
de uma tacada – ele lhe leva a um problema cada vez menor, somente isso; e de
menor em menor, ele fica do meu tamanho – Eureka!
O que cada
aluno dessa escola toda vida lembrará, com base nas vivências
fundadoras de cada um no Instituto Capibaribe, é que aprender é bom, é
prazeroso e é autoral; aprender é trazer para si e reinventar, aprender é
receber os tesouros dos que nos precederam, e dar a esses tesouros o valor
adicional do estilo pessoal; valor adicional que não tem necessariamente medida
clara e objetiva, na direção do desempenho, do achievement tão caro a certas perspectivas anglófonas de educação;
já na condição de pai de aluno do IC, quantas e quantas vezes ouvi em nossas
reuniões de pais e mestres a pergunta angustiada de outros pais: “aqui nessa
escola meu filho até está indo até bem, ele gosta da escola e tudo, mas ele vai
conseguir se dar bem lá fora, noutras escolas, quando
sair daqui? Ele estará equipado para a
vida real, fora desse jardim protegido?” O IC gerou um
paradigma em Recife, e mesmo fora de Recife: meus filhos pequenos frequentam em
Natal, onde hoje residimos, uma escola que é a “cara” do IC, e que atende pelo
sugestivo nome de “Casa Escola” – sentiram o clima? Pois muito bem, a pergunta
permanece, tantos anos depois... Os pais vêem os filhos felizes na escola,
lembram do tanto de porrada que levaram em suas experiências escolares, e se
perguntam, fiéis à tradição judaico-cristã de progresso via penitência: “é possível atingir o bom desempenho sem
sofrência escolar? ” Eu, do meu
canto, pela enésima vez respondo que basta dar uma olhadinha nos egressos...
Sem grandes circunlóquios sobre o valor da perspectiva construtivista, etc e
tal. Olhem os egressos...
O que os egressos do Instituto Capibaribe, hoje com filhos, netos,
bisnetos, e vamos que vamos, o que esses egressos toda vida lembrarão é de uma
etapa da vida em que se consolidaram como pessoas. Aqueles dentre os egressos
que se encaminharam para as lides pedagógicas levarão um acervo de vivências
focadas no rigor, na seriedade profissional do ser mestre, no estudo constante,
no carinho imenso ao ofício e ao educando. E mesmo aqueles que, mais
prosaicamente, admitam não ter histórias muito especiais a contar, esses também
se juntarão a todos os demais, posto que todos têm seu lugar nessa foto, todos tiveram
o privilégio de compartilhar a vivência de uma escola que para sempre em nossas almas
ficará.
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ADENDO acrescentado após
ver o vídeo produzido para a apresentação, como parte do programa, na emocionante cerimônia do Teatro
Beberibe, em que uma das depoentes, ex-aluna do IC, lembrava um dos motes da
escola: “Aqui a gente pode tudo...”.
Isso me trouxe mais uma vivência, que compartilho abaixo.
Clinica Pinel, véspera de Natal de 1980. Eu no plantão,
co-responsável pela Unidade Freud de mais ou menos 50 pacientes do sexo
masculino, a maior parte psicóticos, e
com baixa dosagem média de medicação, como era a tradição na clínica. Por volta
das 21hs sou chamado à unidade, um paciente que me ver.
Eu: Olá, gostaria
de falar comigo?
Ele: Sim,
gostaria. Aqui nessa clínica vocês dizem que a gente tem ampla liberdade, mas a gente não pode nada.
Eu: E o que você
gostaria muito nesse momento?
Ele: O que
gostaria muito, nem vou falar, pois sei que não haveria a menor possibilidade
de ser atendido. Vou falar somente o que gostaria, assim, de boa.
Eu: Diga!
Ele: Gostaria de
que hoje a regra do silêncio das 22hs fosse suspensa, e que a gente tivesse
direito a um recital de música sacra com o primeiro violino da Orquestra
Sinfônica de Porto Alegre.
Eu: Vamos
consultar os demais pacientes – se eles concordarem, eu vou autorizar. Quanto
ao recital... Como fazer para conseguir o violinista?
Ele: Fácil, sou
eu.
Eu: [pensamento
paralelo: acionar princípio técnico de como lidar com delírios; não escarnecer,
não confrontar – aceitar sem se associar ao delírio, etc...] – Vamos ver...
Primeiro vamos tratar da aceitação de sua proposta pelos demais pacientes...
[Ganhar tempo...]
20 minutos depois,
pacientes todos de acordo, volto à unidade para tratar do encaminhamento da
produção delirante, e ao comunicar ao meu interlocutor que a primeira parte da
demanda estava contemplada, ele vai a seu armário, retira um violino, senta-se
com todos os pacientes ao redor, e inicia uma belíssima sonata de Natal, em
meio a muita emoção. Nem precisei conferir depois (mas confesso que o fiz) que
ele era, efetivamente, o primeiro-violino da Sinfônica de Porto Alegre.
Ao final da
noitada, todos se recolhendo, ele me diz: O
senhor sabe, nessa vida, em canto nenhum a gente pode tudo; mas a gente pode
muito quando há boa vontade e boa conversa!
Era sempre assim no Instituto Capibaribe: a
gente de fato não podia tudo, mas a gente conversava tudo e sempre - e findava podendo muito!