“O terrorismo é
duplamente obscurantista: primeiro no atentado, depois nas reações que
desencadeia.”
(Antônio Prata, “Terrrorismo Lógico” , coluna
publicada na Folha de São Paulo de domingo, 11/01/2015)
Após o primeiro momento de perplexidade com a barbárie
cometida contra os jornalistas do Charlie Hebdo, que gerou uma onda de “Je suis
Charlie” mundo afora, começaram a surgir algumas reflexões na grande imprensa e
redes sociais, no sentido de “Eu não sou Charlie”. Ora, pelo menos três
questões estão juntas e misturadas nesse debate: a liberdade de expressão, a
“avaliação” da qualidade da produção do Charlie Hebdo, e a assim chamada
islamofobia. Antes de entrar no vivo do sujeito, permita-me o leitor uma
reminiscência que me assaltou nas últimas horas.
Primeira metade da década de 70 do século passado, eis-me
moleque ginasiano e “diretor-geral” do jornal do Colégio de Aplicação, que
tinha o titulo de “Zeros à Esquerda”, e como epíteto fiel ao titulo, “um
jornaleco pouco relevante”. Nosso lema era aceitar absolutamente toda e
qualquer contribuição, desde que respeitasse as normas básicas da língua
portuguesa e algumas outras normas internas, referentes a nosso “controle de
qualidade” e à nossa sobrevida como periódico (e à sobrevida funcional – ou
outra - de nossos professores): lembremos que estávamos em plenos anos de
chumbo da ditadura pós-golpe de 1964. Nossos professores tinham conosco uma
postura absolutamente exemplar, do ponto de vista de nossa formação: cabia exclusivamente
a nós aceitar ou recusar qualquer matéria para publicar, após refletir sobre os
ônus e ganhos de uma ou outra decisão. Pois muito bem: nesse contexto, eis que
um grupo de alunos do colégio, de formação e origem confessional protestante,
resolvem instaurar o que denominaram de “cultinho”, uma reunião de vários
dentre eles, nas pausas das aulas, para rezarem juntos, entoarem salmos, e por
aí ia; havia um “líder”, aprendiz de pastor, que conduzia tais prédicas. A
“inteligentsia” do colégio, concentrada no comitê editorial sob minha
coordenação, reagiu pessimamente a essa iniciativa, com propostas terroristas
de invadir e esculhambar exemplarmente uma das sessões do tal cultinho;
alegavam que aquilo era um atraso, uma agressão ao clima intelectual
elevadíssimo e laico (apesar de que tínhamos aulas de religião nos sábados pela
manhã...) da escola; felizmente tal proposta (meu primeiro encontro com a
postura violenta que os mais esclarecidos e bem-nascidos podem demonstrar) não prosperou, mas aí os inimigos da
prática e do proselitismo protestante resolveram, mais civilizadamente, propor
uma matéria ao ‘Zeros à Esquerda”, em que esculhambavam, de A a Z, tudo que
dizia respeito a religiões, religiosidade, o grupo de alunos em si, enfim, não
ficava pedra sobre pedra. O “Zeros” tinha circulação mais ou menos semanal,
impresso em stêncil a óleo (para nosso orgulho!), e nas sextas-feiras
divulgávamos, no mural do Clube de Imprensa da escola, as matérias listadas
para publicação, durante a semana seguinte. Uma vez sabedores da tal matéria, o
grupo protestante imediatamente se mobilizou junto à diretora da escola (não me
deram trela como editor), exigindo que a tal matéria fosse vetada. Diga-se:
naquela época, censura a material escrito era uma coisa absolutamente natural,
legal e legítima: o Index Librorum Prohibitorum, da Igreja Católica, ainda
vigente, informava que os textos de um tal de Sigmund Freud programados para as
aulas de filosofia estavam proscritos como livros que os católicos NÃO deviam
ler (líamos alegremente, claro). Proibir uma materiazinha considerada ofensiva
em jornaleco de escola poderia até ser visto como ato pedagógico. A diretora,
porém, mulher de valor e coragem (lembrem-se da época!), informou aos alunos
demandantes de censura (já devidamente escoltados e pilotados pelos pais) que a
decisão final caberia a mim, o editor-geral. Que eles apresentassem a mim sua
demanda e respeitassem meu encaminhamento. Ela finalizou o papo considerando que a função da direção era
fornecer o papel e a tinta, não selecionar as matérias. Foram a mim, então. E
eu, por trás dos meus óculos e de minha magreza adolescente, informei que o
máximo que poderia fazer era abrir espaço para uma resposta já no mesmo número,
ou no número seguinte, como quisessem. Os coleguinhas esbravejaram, ameaçaram,
e no final informaram que não iam publicar porcaria nenhuma num jornaleco de
m(*) daqueles, mas que não iam agüentar calados. O jornal saiu, com a matéria
devidamente publicada e procura recorde pelos poucos exemplares que tirávamos,
e no editorial eu informei que alunos do grupo mencionado na matéria haviam
recebido convite para a devida réplica, mas haviam “declinado”de fazê-lo (pense
num editor elegante!). O tópico freqüentou aulas de Organização Social e
Política do Brasil (OSPB – os cinqüentões vão lembrar...), Educação Moral e
Cívica, reunião de pais, o escambau a quatro, e depois de certo remu-ménage,
tudo arrefeceu, o cultinho por alguma outra razão foi interrompido, e o próprio
Zeros não resistiu à pressão da nossa preparação do exame vestibular, e virou
somente uma reminiscência gostosa para aqueles dentre nós, alunos daquela
geração, às voltas com a gestão da informação e da opinião. Aprendi desse
episódio central em minha gestão de editor que o atributo mais valioso e
sagrado de um órgão de imprensa é o direito e a responsabilidade de decidir,
por si mesmo, o que vai publicar, o que vai vetar. Não propriamente a
possibilidade de publicar tudo e qualquer coisa, mas o livre arbítrio. Diga-se para fechar a sessão nostalgia:
não foram poucas as matérias que recusei (até por considerá-las mal-escritas,
irrelevantes, desinformadas – os autores ficavam umas feras!).
De volta ao presente: a liberdade de expressão, na base
constitucional da liberdade de imprensa em muitos países republicanos e
democráticos, como é o caso da França, mas também do Brasil, continua aqui e
ali sendo acossada por grupos de pressão, como meus coleguinhas fizeram em
priscas eras, para “regular”, de fora para dentro, o que o jornal vai publicar.
O rol de justificativas é imenso, indo desde razões de estado, passando pelo
respeito devido a grupos específicos, e chegando, como na atualidade, à questão
da sacralidade intocável de certos preceitos. Louvo o Charlie Hebdo, e SOU
Charlie, porque o jornaleco JAMAIS cedeu a essas pressões, ponto final. Quem se
sentiu destratado, ofendido ou coisa assim teve espaço na imprensa livre para
reagir, e as barras dos tribunais para argüir eventual desrespeito a lei (como
dizia minha diretora no Ginásio, nós decidimos livremente o que publicar, e
assumimos as responsabilidades). Mas a NINGUÉM o Charlie deu o privilégio de
calá-lo, e ele NUNCA se calou; pagou caro por isso, mas nunca se calou.
Quarta-feira próxima, conforme postei numa de minhas mensagens em rede social,
um doutorando meu em Paris vai comprar pra mim um exemplar do Charlie
pós-massacre (em tiragem recorde de 1 milhão de exemplares!), não porque sou fã
e adoro o Charlie: nos quatro anos em que morei na França, ele nunca foi minha
praia, raramente o comprei, leitor fiel que sempre fui do Libé. Vamos então deixar bem claro o
seguinte: SER Charlie, na atual conjuntura, não quer absolutamente dizer que,
do dia pra noite, todos passamos a adorar, curtir e ler com sofreguidão o
Charlie; O Charlie é o Charlie, o
buraco é mais embaixo! Que isso fique claro, oras! Tariq Ali, escritor
paquistanês radicado no Reino Unido, teve a infelicidade de, a esse respeito,
escrever o seguinte: “Defender o direito
de publicarem o que quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa,
mas sacralizarem um jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já
são vitimas de uma islamofobia desenfreada nos EUA e na Europoa é quase tão
tolo quanto justificar os atos de
terror contra a publicação” (“Guerra entre Fundamentalismos”, Tarik Ali,
Folha de São Paulo de domingo, 11/01/2015, seção “Tendências/Debates”). Pelas
barbas do Profeta, se um membro da inteligentsia arabo-islâmica enxerga nas
charges do Charlie um ataque (nos moldes da extrema direita) ao povo e a cada
muçulmano, ao invés de um ataque a uma manifestação de fundamentalismo, o que
esperar dos jovens suburbanos que foram recrutados para fuzilar os jornalistas?
Voltemos então ao hit do momento, o duo “sacralidade”de
certos princípios e “islamofobia galopante” da qual o Charlie seria vetor (aí muita gente boa diz: “Pois é,
criticamos radicalmente os assassinatos cometidos, isso é inaceitável, MAS o
jornal, DE CERTA FORMA, fez por onde merecer, ao desrespeitar princípios
sagrados de uma religião e de um povo”). Concordo que há, na Europa de hoje, e
muito particularmente na França, representação social bastante rebaixada do
elemento arabo-muçulmano. Para muitos, os jovens nascidos na França de pais
imigrantes de origem árabe seriam cidadãos de segunda (ou terceira) categoria.
Essa não é uma constatação sem fundamento, há vários indicadores nessa direção
(eu mesmo teria algumas histórias para contar, apesar de brasileiro, mas
suspeitamente moreno - igual a um
magrebino, ou iraniano). Ligar o Charlie, contudo, à islamofobia, é um ato de
singeleza intelectual, para não falar coisa pior. E isso independentemente do
fato que o árabe-muçulmano médio possa se sentir humilhado, enraivecido,
desrespeitado por determinadas charges que foram publicadas. Entendamos o seguinte:
as charges não se destinaram a desqualificar Said ou Muhamad, e sim desafiar um
establishment ideológico-religioso que, entre outras coisas, se dá o direito de
proclamar sentenças de morte (chatwas) como a que foi proclamada contra Salman
Rushdie, anos atrás, por ter ousado escrever os “Versos Satânicos”;
fundamentalismo que decepa cabeças de repórteres em redes sociais;
fundamentalismo que fuzila jornalistas aos gritos de “Deus é grande”;
fundamentalismo que elege premissas oriundas de crenças religiosas como
preeminentes sobre determinados valores republicanos – e por aí estão dados os
elementos para um choque real de perspectivas culturais. Não obstante, isso não
dá razão à extrema-direita em seu discurso xenófobo de “guerra ao islamismo”: a
guerra se estende a toda e qualquer postura que eleja como fundamentos
princípios outros que não a liberdade, a igualdade e a fraternidade de 1789 – o que, diga-se, abarca o
fundamentalismo de direita, o xiitismo de extrema esquerda, as agressões
sionistas, e por aí vai. Se houvesse, em Paris, um posto de atendimento aos
descontentes com o Charlie Hebdo, para distribuir fichas que desse ao portador
o direito de um tiro ou uma bomba na sede do jornal, os rolos de fichas teriam
de ser repostos todo dia... O serviço que o Charlie tem prestado aos Muhamads e
Saids, assim como aos jovens neo-nazistas da extrema direita xenófoba e (esta
sim!) islamofóbica, é a chance de saírem da zona de conforto e pensarem. Pensar!
Ô que coisa difícil e perigosa! Como bem escreveu Hélio Schwartsman, “(...)
para funcionar plenamente, a democracia exige algum nível de insulto”.
Enfin, bref: SOU e CONTINUO
SENDO CHARLIE (e triste por não ter podido bater asfalto na Place de la
Republique, hoje à tarde, onde Paris se manifestou em defesa da liberdade de
expressão) não porque passei, do dia pra noite, a avaliar Charlie como o suprasumo da imprensa
nanica satírico-crítica: sou Charlie porque o Charlie, hoje, é o símbolo da
liberdade agredida, mas em processo político de recuperação. Sou Charlie não
porque considero que os franceses de origem muçulmana são os inimigos a abater
– mesmo que eles se materializem na tela de minha TV como soldados do terror;
se cada um dos 8 milhões de franco-muçulmanos resolvesse detonar a França, não
iria ficar pedra sobre pedra. Sou Charlie porque Charlie representa uma
imprensa arisca, incômoda, desconfortável (acrescente aqui seus adjetivos), que
sempre representou uma garantia republicana, na prática, de que o ódio não pode
ser eregido à condição da sacralidade, e ponto final – doa isso à direita, à
esquerda, aos muslins, aos cardeais, aos rabinos ultraconservadores, ao
policial torturador da esquina, a quem se eregir em esbilro do totalitarismo
que, de cima pra baixo e de fora para dentro, lhe diz o que pensar, o que
decidir, como agir. É disso, e por isso, que se nutre minha convicção de SER
CHARLIE.