quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

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Creio ter sido o filósofo Jürgen Habermas quem escreveu em um de seus textos que a base da civilização é a argumentação: a capacidade de defender uma perspectiva, suportar perspectiva contrária atacando-a com a palavra (e não a tiros), e tendo a honestidade intelectual de, no caso de contra-argumentação eficaz, mudar o próprio ponto de vista (no todo ou em parte). A Democracia, forma de governo baseada na discussão prévia de idéias e posterior tomada de decisão coletiva fundada na perspectiva majoritária, tem no Parlamento (que evoca em sua etimologia os termos “parler”, “parlare” – falar) seu cenário, arena, sacrário. Em suma, a civilização repousa sobre o embate de idéias, respeitando-se politicamente a opinião da maioria, e preservando-se o direito de expressar qualquer opinião, e lutar por ela, mesmo na condição de minoritário. A barbárie, por outro lado, consiste na defesa de uma perspectiva através da ação de calar o adversário – seja através da regra censória, seja através da morte, via tacape, fogueiras em praça pública (onde são queimados obras, autores ou ambos), ou tiros de Kalachnikov. O  mais triste e grave do modus operandi bárbaro consiste no fato de que, efetivamente, contra a bordoada, não há argumento. É a falência da palavra. A tradição cristã inovou a prescrição do Princípio de Talião (“olho por olho...”), herdada do Antigo Testamento, com o “dar a outra face” do Novo Testamento; hermenêutica religiosa à parte, vejo com sérias reservas um e outro princípio, mas essa não é uma reflexão religiosa, então restrinjo-me ao registro. Se alguém responde à minha perspectiva com um tiro, só me resta (a mim, cidadão, no sentido da citoyenneté que emerge com o Iluminismo – do qual tento desesperadamente me preservar como filho) dar-lhe um tiro de volta (caso tenha sobrevivido ao primeiro tiro), ou recorrer à Lei – quando e se houver uma.
Esse introito vem a propósito da ação bárbara de ontem, em Paris, onde um grupo de indivíduos encapuzados invadiu a sede do jornal semanal Charlie Hebdo e matou a tiros jornalistas, funcionários e um segurança. Ao que tudo indica, tal ato foi a resposta que encontraram às posturas e charges publicadas pelo jornal, consideradas ofensivas ao Islã. A República Francesa tem leis e aparato policial que certamente reagirão à altura: no momento em que escrevo essas mal-traçadas linhas, já há um suspeito preso, e outro sendo procurado. Espero que sejam todos presos, julgados, sentenciados e condenados. O mais preocupante, contudo, além da eclosão da barbárie em pleno coração de Paris (que persiste sendo, pra mim, um dos epicentros da civilização nesse planeta), é o efeito tóxico desse ato. Imagino que a extrema direita francesa agradeceu de coração pela imensa ajuda desses idiotas, e irá à luta pela demonização de tudo que tenha relação com o mundo árabe; a maioria silenciosa que compra suas baguettes e aluga seus imóveis restringirá ainda mais o acesso de magrebinos suspeitos (e, pode ter certeza, vai sobrar para os brasileiros – passei por isso...). O clima social francês, essa entidade abstrata mas poderosa, deve neste momento estar pesando de forma desagradável, agourenta, preocupante.
            E nós, apóstolos e ativistas da palavra e do embate de idéias – para onde vamos? Como ficamos? Certamente não temos o que dizer aos encapuzados – o que me passa pela cabeça dizer é melhor manter em privado. Interessa-me mais o Senhor e a Senhora “Tout le Monde”, em Paris, na França e alhures. Aquele e aquela que têm duas convicções: 1. Esses árabes desgraçados mostraram sua verdadeira face, e deviam sumir da face da terra (ou pelo menos da França); 2. Esse pessoal do Charlie Hebdo, por outro lado, não tinha nada que publicar as atrocidades que publicam, fizeram por onde atrair o que aconteceu (guarda certa semelhança com a lógica da saia curta que atrai estupro). Meu Senhor, Minha Senhora: apliquemos a lei ao grupelho terrorista, de forma exemplar; mas sobretudo apliquemos a esse tipo de postura a contrapartida mais mortífera que ela pode receber: a defesa intransigente da cidadania plena no que ela tem de liberdade de pensamento e expressão, de proteção à diferença, à divergência, à discrepância da maioria, sem que ninguém amordace ninguém. Quanto ao Charlie Hebdo, mesmo que não seja o caso de comprá-lo e lê-lo, mesmo que seja o caso de considerá-lo pueril e irresponsável (ou qualquer outro epíteto depreciativo), ele precisa continuar existindo, não por ele em si, mas pelo que representa em termos do combate ao conforto da regra coletiva dominante. Mais que burra (dixit Nelson Rodrigues), a unanimidade é fascista e bárbara. Ao fuzilar os jornalistas do Charlie Hebdo, os encapuzados tentaram de fato assassinar uma forma de funcionamento social; pois bem, NÃO PASSARÃO! Não passarão porque persistirá havendo quem pense e quem articule, e quem receba essa palavra e a enriqueça. Na salvaguarda da dialogia da palavra reside nossa única esperança de fazer face à barbárie. Nesse sentido, todo apoio a que se reconstrua o jornal, à substituição dos que tombaram por outros chargistas na lide das pranchetas de concepção. Todo apoio à preservação da liberdade, da divergência e da vida.

Um comentário:

TWO OF US disse...

Hoje,na tranquilidade de minha mesa, em casa, no almoço, conversava com minha companheira sobre os problemas que os imigrantes terão na França. Ano passado eu fui muito desrespeitada por franceses...E estava de férias, gastando meu dinheiro em um País que recebe com muita falta de educação seus visitantes. Imaginei, em muitos momentos, como deve sofrer o imigrante que ali vive. Percebi que Paris e algumas cidades têm uma riqueza cultural maravilhosa, e só volto por causa disto. Mas os franceses são difíceis de conviver. E a maioria vive dos louros do passado, seja na educação/artes, seja na política. Em muitos lugares, os moradores nem sabiam que era Camille Claudel, ou o que tinha de tão importante em Giverny...

Depois que cheguei no Brasil, fui pesquisar na internet e descobri que uma porcentagem absurda de jovens param no curso técnico e trabalham até a velhice, se conseguem chegar lá. A Miséria do Mundo, de Bourdieu, é um livro muito atual e estou a relê-lo. Talvez Bourdieu foi quem mais descreveu a verdadeira França...

Em muitos países da Europa, por diversas razões, o ensino superior não atrai mais os jovens, o que limita e muito, o pensamento crítico da população. E, também, mudanças na educação Básica.

E viajando de carro por algumas cidades da França, percebi que os imigrantes vivem em condições precárias. E a maioria mora em bairros distantes da "charmosa" Paris. Nestes bairros, dificilmente se encontra cinemas, o que dizer de bibliotecas, livrarias e teatros? Nada muito diferente de nossos centros urbanos. Pensei como as crianças e jovens devem sofrer naquele País....Principalmente os filhos do imigrantes.

Nada justifica a barbárie do terrorismo, mas explica e muito. Um jovem que recebe atenção, conforto e apoio, jamais perde sua juventude na tristeza da guerra. Eu não acredito que os filhos de imigrantes, principalmente de origem étnica a dos terroristas, tenham apoio do Governo francês, principalmente por se tratar de um País que se mostra muito atrasado com a questão da educação das crianças, seja na família, seja na escola ( o nosso ECA é maravilhoso, quando usado. E a França necessita, urgente, de um Eca como o nosso!). O documentário Ser e Ter, mostra o que vi naquele País: crianças sendo maltratadas fisicamente e psicologicamente por adultos. É complicado ver uma criança apanhar na nossa frente e não poder fazer nada.

Por outro lado, penso que a esquerda, há muito adormecida, não só na França, pode e DEVE se levantar para fazer a diferença: passeatas e ações contra guerras financiadas por países dito primeiro-mundistas para frear as guerras em países esquecidos há muitos anos pelo Ocidente. Só há imigração porque não tem como viver nos países de origem. E só há procura pelos países da Europa porque, no passado, eles colonizaram de maneira perversa tais países. Hoje, vive-se a resposta da opressão passada: milhares de pessoas do Oriente procurando sobreviver no Ocidente.
E a reflexão que faço é: será que se a França houvesse, de verdade, um trabalho com crianças e jovens de imigrantes, nas escolas, os dois irmãos e sua família, como tantos outros de sua origem, tivessem sido atendidos com dignidade ( assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e outros profissionais), o crescimento de jovens que seguem pelo caminho do terror existiria? Será que a França e outros países da Europa tem dado o devido valor aos imigrantes? Será que a esquerda não dorme na tranquilidade de conquistas passadas? Será que não estamos dando apoio, mesmo que inconscientemente, a direita de todo o Ocidente? Será que não estamos de olhos fechados ao Oriente? Será que estamos cuidando bem da geração futura? São perguntas que me despertam depois de um ato tão bárbaro como o que presenciamos.