sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Quando a vida começa? Quando a vida termina?


Ano que vem, cinquenta, idade em que tem início a decadência do homem.”

Dráuzio Varela narra ter ouvido essa frase de um conhecido de priscas eras, desses que a gente encontra no meio do mundo, custa a reconhecer, luta para se desvencilhar, e ainda tem de aguentar pérolas de sabedoria e generosidade como essas. Tal narrativa vem na Parte 1 de seu mais recente livro, “Correr”, parte intitulada “A largada, ou a vida começa aos cinquenta”. Dráuzio comenta o quão impactante foi para ele ouvir aquela mesquinharia; e o quanto a frase tocou num daqueles pontos nevrálgicos da alma, um daqueles que só constatamos mesmo que temos depois que ele é devidamente cutucado. A frase o fez reagir energicamente – não para se contrapor ao pobre idiota que retornou às brumas do passado, mas para reagir à própria instância interna de auto-sabotagem com a qual havia convivido até então.
Sedentário, estressado, com padrão de  vida profissional daquele tipo para o qual o trabalho não cessa nunca – tantas são as tarefas a cumprir, tantas são as que não se consegue cumprir, invadindo as noites e inviabilizando o sono (conheço essa história de algum lugar). Dráuzio não explica muito bem, mas a forma que encontrou para reagir àquela sentença mesquinha foi...correr! Correr, entenda-se bem, não aquelas corridinhas michas uma vez na vida outra vez na morte – correr maratonas! 42km!
Por coincidência, cismei do juízo uns tempos atrás de começar a caminhar, depois trotar, para um dia correr um percurso todo. Nesse clima, ouvi referências ao livro de Dráuzio, e resolvi comprar o eBook para ler no avião, no percurso que me levou de Natal a Lyon (França), para jornada de trabalho intensa em janeiro de 2016. Minha expectativa era que iria ler esse livro no mesmo registro em que li, décadas atrás, o best-seller acerca do “Método Cooper”, lançado pelo médico norte-americano Kenneth Cooper. Lá no íntimo suspeitava que o livro de Dráuzio Varela seria mais interessante que as páginas monótonas do livro do Dr. Cooper – depois da 10a página, a lenga-lenga torna-se insuportável... Dráuzio, por sua vez, havia escrito anteriormente o “Estação Carandiru” – narrativa de excelente qualidade, livro que lhe pega, lhe dá uma surra e não lhe larga até você conseguir a alforria da última página. Meu íntimo estava certo...
Mal ultrapassei as primeiras páginas, percebi que o registro em que leria “Correr” estava mais próximo do registro em que li um livro que fez minha cabeça também décadas antes, “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”, do norte-americano Robert Pirsig. Sendo que dessa vez, a motocicleta seria eu mesmo – a velha carcaça de quase 60 mil km com que venho percorrendo a vida.
Após a frase mesquinha do conhecido no fatídico encontro, Dráuzio se (com)prometeu, cumpriu e virou maratonista. Começou vida nova e “carreira” de maratonista aos cinquenta anos, e hoje, aos setenta, continua lépido, fagueiro e maratonista militante – haja vista o texto que produziu. Nesse texto, mais do que a apologia (difícil de aturar depois de dois parágrafos) do “get physical”, Dráuzio lança digressões sobre o lado metafórico do correr, o quanto isso serve para chegar ao equilíbrio-zen para o qual Pirsig havia eleito o cuidado dos pistões da velha motocicleta como caminho da Iluminação e da Harmonia. Chama ainda a atenção para a questão crucial do quando começa, quando termina a vida. No fecho do livro comenta abertamente que, aos setenta anos, sabe que não lhe resta muito tempo pela frente – não que esteja doente, está ótimo, não faz uso continuado de nenhum medicamento (avis rara em sua geração), e continua treinando para correr suas duas maratonas anuais (às quais tem acesso garantido por estar sempre no limiar dos cinco segundos a menos que o tempo de corte de sua faixa etária, tempo esse registrado em corrida oficial anterior). Ao mesmo tempo que não tem ilusões sobre continuar correndo maratonas ad eterno, constata o quanto vive bem hoje, depois que a disciplina da preparação de cada maratona, e o esforço de corrê-las (competindo contra o próprio limite de esgotamento), fizeram dele um homem melhor.
Eu, de minha parte, não tenho absolutamente o interesse de correr uma maratona; minha ambição nesse domínio é muitíssimo mais humilde. Mas compartilho a motivação de me tornar um homem melhor. Um homem mais sereno, mais harmônico com seus próprios chakras, mais harmônico com a vida e com a vibração para além do chiqueirinho. Entendo perfeitamente a metáfora zen que é correr para Dráuzio Varela; entendo que haja tantas outras ao alcance; e entendo que convém a cada um achar a sua. Iniciar uma vida por dentro da vida – não no sentido de nenhuma mudança espetacular e espetaculosa – somente o avanço, mínimo que seja, em direção à Iluminação que é tão cara a alguns mestres, e tão distante da realidade de tantos que nos cercam, de nossos próprios desatinos e desequilíbrios. Tudo passa, tudo flui, inclusive a vida que é dado a cada um viver – salvo que é sempre possível buscar formas melhores de navegar nesse curso d’água que é a vida. Meio óbvio, mas de repente tão prenhe de sentido...

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