Com esse título, o jornalista do
Le Monde Renaud Lambert publicou reflexão de
grande qualidade sobre o momento de crise dos governos de esquerda na
América Latina inteira, de Cuba até a Argentina, passando pela Venezuela,
Bolívia e Brasil (Amérique Latine, pourquoi la panne? – Le Monde Diplomatique, edição
Janeiro-2016). Essa análise nos convém muito, a nós brasileiros, por três
razões: primeiro, trata-se de uma visão de
fora, útil nessa hora, em que se acirram aquelas tensões excessivamente
atravessadas pelas emoções, que nascem e explodem nas redes
familiares de WhatsApp, aqui no Facebook, nos contextos de trabalho, além dos
ambientes mais clássicos de discussão, como as universidades e grande imprensa;
segundo, porque traz elementos estruturais, inerentes aos demônios internos da
própria esquerda, que ajudam a ampliar a discussão para além do contexto
judicial-policial que tomou conta dos motes de todos os debates que estão
postos – o que aliás é o fulcro da abordagem conservadora da grande imprensa no
Brasil (a deliberada escolha da análise enquanto “caso de polícia”, com
“xerifes” togados e pichulecos; aliás, Kim Kataguiri, golden boy dos movimentos
pró-impeachment da presidenta Dilma, escreve hoje matéria de destaque na Folha
de São Paulo com o grandiloquente título “Nossa geração sobreviveu”, em que
assimila Lula a um dos vilões dos Power Rangers da infância dele...
comovente... ); terceiro, porque traz um olhar que busca os invariantes à
debacle atual da esquerda em toda a América Latina, resguardadas as
especificidades de cada realidade nacional, mas sem perder de vista alguns
pontos cruciais comuns e históricos – e quem não conhece bem a história, está
condenado a repeti-la, como advertiu Edmund Burke (e Ernesto Che Guevara adotou
como mote) há mais de 50 anos atrás.
Minha opção pelo comentário, ao
invés da tradução pura e simples, deveu-se a meu interesse em mudar o foco
original de análise de Renaud Lambert da América Latina como um todo, para a
análise do contexto brasileiro em primeiro plano, com a América Latina como
pano de fundo. De toda forma, registro aqui o crédito dos pontos de análise ao
autor do texto de referencia – é dele o mérito, é meu o risco.
Breve tour latino-americano
proporcionado por Lambert em vários pontos de seu texto: (1) Um repórter
uruguaio perguntou ao então presidente do Uruguai em final de mandato, José
“Pepe” Mujica, por que razão seu governo não tinha conseguido levar mais longe
as reformas que estavam em sua plataforma político-ideológica; com seu jeito
despachado, Mujica respondeu, curto e grosso: “Porque as pessoas querem iPhones!”; (2) Nessa mesma linha, o
embaixador da Venezuela na França, Héctor
Michel Mujica Ricardo, relata conversa com uma jovem mulher num bairro
popular de Caracas, às vésperas da eleição presidencial venezuelana de 2013 –
mulher que, segundo o embaixador, encarna uma das categorias sociais mais
favorecidas pelas políticas redistributivas do
Chavismo; diz ela: “Antes, eu
vivia na miséria. Foi graças a Chaves que eu consegui melhorar. Agora que não
sou mais pobre, eu voto com a oposição.” (3) Bolívia, depoimento de um
pequeno lavrador beneficiado pela política nacionalista e de valorização do
pequeno agricultor lançada pelo presidente Evo Morales: “Agora que eu tenho dinheiro, eu posso tudo!” (4) Brasil: o
cientista político Armando Boito, em análise acerca do enfraquecimento do MST, traz
a seguinte explicação: os pequenos lavradores-sem terra que se beneficiam de
uma gleba e que passam a ter alguma coisa a perder assumem imediatamente uma
lógica e visão de vida cara a uma “sociedade de proprietários”, tão
conservadora quanto aquela defendida pelos mais conservadores grandes
proprietários da direita rural brasileira; isso evidencia que, ao lado do
sucesso imediato de conseguir uma gleba via invasões, não se conseguiu mudar a
mentalidade de todo aquele que recebe essa gleba, que doravante se vê como um
“dono de terras”(mesmo que em miniatura...).
Para além dessas dinâmicas que
se passam nas classes mais desfavorecidas, como é o caso da famosa “classe D de
Lula” (aquela que ascende do lúpem-proletariado e consegue seus primeiros
boletos, além de pela primeira vez enviar seus filhos à universidade pública), há
que considerar importante processo no seio das classes médias. Agora há pouco,
em 2015, nas vésperas da última eleição presidencial argentina, redes sociais
consideradas progressistas divulgaram o documento “Os ciclos econômicos da
Argentina”, que em meu entendimento são passíveis de apropriação, como
ferramenta de reflexão, para a cena brasileira. Segundo a análise argentina, a
história política daquele país estaria condenada a um ciclo vicioso com as
quatro etapas seguintes:
[1] A direita assume o poder e destrói o poder de compra,
as perspectivas e sonhos das classes médias.
[2] As classes médias pauperizadas ficam mais sensíveis às
propostas progressistas, de resgate da cidadania, de reação aos vilões de
direita que as pauperizaram, passam a
votar à esquerda, aliando-se aos bolsões do voto militante de esquerda, e
conseguem eleger um governo de esquerda.
[3] Eleito, esse governo volta-se em primeira instância
para os bolsões de pobreza, que ascendem socialmente em termos de consumo e
inserção social, e beneficiam igualmente as classes superiores, tendo em vista
o caráter reformista (e não revolucionário – o que de resto não é possível pela
via de acesso ao poder através do canal democrático do voto); as oligarquias
querem, contudo, recuperar sua hegemonia, pois sabem que governos de esquerda,
mesmo na condição de aliados pela governabilidade, não são suficientemente confiáveis.
[4] Inicia-se movimento político de reconquista do poder
pelas oligarquias; as classes médias empoderadas identificam-se com o poder
conservador de direita, e mesmo os “remediados” com up-grade recente para a
classe D se tornam igualmente sensíveis ao discurso conservador. Esse dado
estrutural pode ser circunstancialmente agravado por aspectos relacionados à
corrupção no trato da governabilidade, e perspectiva de diminuição de direitos
advindos da necessidade de reformas tributárias – notadamente aquelas ligadas à
previdência e aposentadoria, por exemplo. A direita, nesse contexto,
reconquista o poder, com ampla ajuda da classe média – fiel da balança que
antes ajudou a eleger a esquerda, e que agora ajuda a eleger a direita, dando
um tiro no pé representado pela retomada do ponto 1 do ciclo: as oligarquias, afinal,
não têm compromisso com classes médias metidas a besta, mas estas, de forma
sistemática e cíclica, demonstram amnésia histórica recorrente.
Estamos, nesse belo país, em
pleno estágio 4, às vésperas do retorno ao estágio 1. Eu já vi esse filme
antes, com gente de minha família marchando com Deus pela Pátria, Família,
Tradição e um mínimo de perspectiva de comprar um carrinho melhor, depois todos
orgulhosos de meter os peitos, junto com Fafá de Belém, e urrar pelas Diretas,
depois eleger aquele que antes chamavam
de Sapo Barbudo, e agora lutar pelo aniquilamento completo de tudo que cheire a
petismo, esquerda, lulas, dilmas e assemelhados, todos convencidos que fazem
isso em prol da honra, da moral e dos bons costumes, esquecidos do atavismo
maldito em que estão metidos desde sempre .
Como, justamente, quebrar esse
ciclo atávico que condena não só o Brasil, mas TODA a América Latina, conforme
argumenta e analisa Renaud Lambert? Como avançar efetivamente por vias que não
explodam o Estado de Direito e dessa forma preservem a Democracia, e ao mesmo
tempo permitam a construção de um estado efetivamente progressista? Claro está
que a própria formulação da questão denuncia alguns pressupostos que me são
caros – como a preservação de um status-quo republicano, democrático e plural
que, para algumas perspectivas, JAMAIS permitiria passar do mero reformismo à
revolução estrutural sem a qual nada poderia vir a quebrar o ciclo maldito
acima. Prefiro as vicissitudes de erros e acertos desse velho e inatingível ideal democrático às pretensões
dos “centralismos democráticos” oriundos dos diktats de qualquer segmento
ideológico do espectro – da extrema direita à extrema esquerda, passando pelos
que juntam Deus, Diabo, política e governo.
Claro está que nem de longe consigo
discernir resposta pronta e fechada para essa questão. Até porque problemas
complexos não se resolvem com atos de fala que não estejam lastreados no
dinamismo da ação política envolvendo indivíduos, coletivos, coletivos de
coletivos, e História. Só isso. Mas formulá-la em termos menos simplórios me
parece um primeiro avanço. Tudo o que tenho são vislumbres para navegação
própria em tempos de mar revolto, de forma a ficar em paz com minha consciência
e me poupar do risco de respostas singelas para questões idem (“Vai pra rua tal
dia, em prol da luta contra a Corrupção, o Demônio e o Mal?” “Vai para a rua
defender as verdadeiras causas populares?” Etc.).
Marx ensinou que uma forma
produtiva de categorização dos protagonistas da cena social, econômica e histórica
é aquela que os cinde em termos de proprietários dos meios de produção
(o Capital em suas variadas formas), e proprietários da força de trabalho
(aqueles que alugam esse insumo ao Capital). O interesse central dos primeiros
é o lucro
– o mais amplo possível; já o interesse central dos últimos é o salário
– o mais “justo” possível (no limite inexorável imposto pelo princípio da mais
valia). Adoto essa categorização
como minha e como absolutamente central como marco zero de uma série de
análises. Usualmente essa cisão alimenta apelidos de famílias políticas, a mais
popular delas sendo a clássica cisão nascida na Assembléia Francesa, a
“direita” (“droite”) e “esquerda (“gauche”); digamos assim, numa perspectiva
simplificada, que a direita costuma representar os interesses dos donos do
Capital (que são naturalmente menos numerosos – donde outro qualificativo da
direita – oligárquica (vide prefixo
grego da palavra); e a esquerda, por sua vez, representaria grosso modo os
interesses da massa trabalhadora locatária de sua força de trabalho. Há muito
me convenci de duas coisas, um tanto anti-românticas: ser de direita ou de
esquerda não pode ser facilmente assimilado a categorias como “bem” e “mal”,
mas diz respeito a interesses inconciliáveis. Por outro lado, ter uma leitura
do mundo em termos de esquerda e de direita não vem dado de presente em função
da inserção do indivíduo num segmento abastado ou pobre da sociedade: ser pobre
não é condição garantidora de ser de esquerda, conforme ilustram muito bem os depoimentos
reproduzidos lá na abertura dessas reflexões. Ademais, o proprietário de uma
singela facção de produção de vestuário no interior do nordeste brasileiro é
tão proprietário quanto o dono (ou acionista principal) de uma fábrica de
automóveis. Ambos terão uma relação estruturalmente semelhante com seus
assalariados.
Direita e esquerda são portanto
estruturalmente incompatíveis, o que não significa que não possam (e mesmo não
devam) instituir alianças de governança. Pensemos numa fábrica “X” em um determinado
contexto econômico: sua proteção e manutenção pode ser foco sinérgico de ações
de um governo de aliança direita-esquerda, mesmo que no fundo cada pólo mire
interesses diretos e até certo ponto (vide mais uma vez Marx) contraditórias:
para os patrões, o lucro, para os trabalhadores, a manutenção dos postos de
trabalho, e dos direitos que regem e balizam o estabelecimento do salário
direto e vantagens associadas (como a aposentadoria, por exemplo). Se as
alianças são possíveis e mesmo desejáveis, não é possível que a esquerda passe
do estágio de governo com a direita para o estágio de
governa para a esquerda (cf Lambert). Esse é um erro que a direita
raramente comete, e que infelizmente ocorre seguidamente aos regimes de esquerda
(o que caracterizaria o estágio três do ciclo proposto pelos argentinos,
descrito acima). Lula advertia, em colóquio no Instituto Lula, proferido em
05/10/2015, que “cada vez que um partido
de esquerda chega ao poder, ele se fragiliza.” É natural que ele se
fragilize, porque ele tem diante de si uma tarefa tríplice: a) manter no curto
e médio prazo a governabilidade, e no longo prazo o poder (uma longa saga de
trocas de favores se insere aqui, desaguando na cena brasileira atual) ; b)
manter um programa de esquerda, que vai muito além de proporcionar ao povo
trabalhador meios para que cada um brinque de “ser bacana”, ser consumidor,
jogar o mesmo jogo de sempre – conseguir mandar os filhos para a escola e para
a saúde privadas, ao invés de algo mais além... ; c) manter a própria vida
orgânica das entidades partidárias, cujos militantes de base agora disputam e
perdem espaço para os companheiros que têm missões de governança (segundo
Lambert, isso ocorreu de forma intensa tanto na Venezuela, quanto na Bolívia e
no Brasil); a fragilização da militância, entenda-se, é fatal ao funcionamento
de uma entidade política que se pretenda de esquerda, e essa fragilização
costuma ser urdida historicamente pela própria dinâmica do partido de esquerda
que sobe ao poder. É nesse contexto que os cientistas sociais argentinos Alana
Moraes et Jean Tible (« ¿ Fin de fiesta en
Brasil ? », Nueva Sociedad, no 259,
Buenos Aires, septembre-octobre 2015) escrevem que hoje, no Brasil, « o PT se constitui
muito mais em obstáculo [à uma ação política efetiva de esquerda] que
em ferramenta.” Como disse
Frei Beto ao se despedir do Planalto, de Lula e do engajamento na máquina de
governo e poder, o PT havia se perdido de si mesmo ao subir a rampa do palácio
presidencial. Nesse sentido, veja o leitor que a derrocada atual do PT,
e, lamentavelmente, de uma proposta de esquerda para o Brasil, é alimentado e
ampliado pela crônica policial dos intestinos do método de governança na qual o
PT se lambuzou, mas o PT já havia urdido a crônica de sua morte anunciada muito
antes disso – não só o PT, mas as organizações de esquerda em vários outros
países que elegeram recentemente governos dessa tendência, e perdem as
respectivas eleições uns após outros. O PT está hoje refém das ruas TAMBÉM
pelos desmandos delituosos de seus quadros (de tesoureiros a presidentes – mas
suspeito que deve ter sobrado um troco até para os faxineiros das sedes do
partido – viva a inclusão social petista!). Mas o PT vai cair porque não soube
estabelecer um projeto de governança que aliasse interesses variados do
espectro direita-esquerda de interesses do Brasil, estabelecendo pontos de
convergência e preservando papéis e compromissos históricos. Com isso o PT
perdeu a classe média – esse grupo que vive sonhando num futuro sempre melhor
para seus filhos – e vai perder a classe trabalhadora, quando os boletos
começarem a ficar sem pagamento devido à perda dos empregos e respectivos salários.
Resta, por fim, aludir a como ficamos para os dias que virão. Poupo-me
aqui do varejo das discussões sobre impeachment sim-não, renúncia sim-não,
semipresidencialismo (a nova moda nas discussões), e por aí vai. Tudo o que
diria é que é preciso quebrar o ciclo aludido pelos argentinos evitando a todo
custo divulgar a ideia segundo a qual a saída, agora, deveria ser
necessariamente conservadora – eleger a direita. Esse é um engodo cansativo, é
por ele que se retoma o ciclo do rame-rame da história dessa sofrida América
Latina. A proposta de esquerda continua de pé para todo aquele que se insira na
condição de assalariado, mas também na condição de quem quer para o país um
governo que tenha compromisso com uma maioria fragilizada, e não com uns poucos
que assumem a posse dos meios de produção do país (a percentagem aliás desses
protagonistas diminuiu bastante, em face da “política de esquerda” dos últimos três
mandatos petistas). Não há perspectiva para a classe média fora da esquerda,
pela simples razão desse segmento ser constituído, em sua maioria, por
trabalhadores que possuem bens (até casas na praia e bons automóveis), mas não
os meios de produção dos mesmos. Leões e cervos olham a savana a partir de
pontos de vista sempre inconciliáveis, apesar de que, tudo bem pesado, têm muitos interesses em
comum (sempre a partir de perspectivas diversas).
A classe média
brasileira está às vésperas de eleger um governo de direita no Brasil – posso
sentir isso aqui nos posts de FaceBook e WhatsApp que explodem em meu
smartphone enquanto escrevo. O velho ciclo tem grandes chances de retomar, até
porque o PT está bastante ferido, e outros vetores de proposta de esquerda não
têm musculatura para apanhar a bandeira e retomar a estrada. Freud escreveu, no
contexto da economia psíquica e do trato dos sintomas neuróticos, que aquele
que não entende seus sintomas está condenado a repeti-los. Sem drama e sem
derrotismo, com determinação e paciência histórica, precisamos alimentar
narrativas, argumentações e discussões que preservem a autocrítica das
propostas chamadas “progressistas”, de esquerda – progressistas porque são as
únicas compromissadas com o resgate dos mais frágeis, com a correção das
injustiças do Darwinismo social que o Capitalismo é pródigo em gerar. Votar na
direita, nesse contexto, permito-me dizer (apesar das pedradas que acarretará),
é algo absolutamente pertinente para quem se alinha do lado da oligarquia dos
proprietários; no caso dos demais, trata-se de equívoco que oscila entre a
burrice e a ingenuidade, a depender de cada caso. Trabalhar com a direita, sim
(eventualmente); trabalhar para a direita, jamais. Esse é o espírito que quero
compartilhar e disseminar para os dias que virão. Como isso vai se traduzir em
termos do concreto mais concreto – direções, partidos, candidaturas – vai
depender de quem continuará solto ou preso, elegível ou inelegível, vinculado a
qual sigla partidária, inserido em qual narrativa biográfica. Fundamental será a oferta e manutenção de
uma proposta de esquerda – com todas as dificuldades de se conseguir uma,
atualmente; sabendo-se que a alternativa à direita não é alternativa para
muitos – grupo em que me insiro – é pura neurose política, para dizê-lo da
forma suave dos psicólogos...
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