quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Ensinar é a coisa mais bonita que tem!

Ao saber que meu destino era o campus universitário da UFPE, o motorista de taxi que me conduzia a partir do aeroporto dos Guararapes, em Recife, perguntou logo na manobra se eu era professor. Diante da resposta positiva, ficou em silêncio uns segundos, como quem toma coragem, e:
- O senhor pode me dizer o que significa a palavra “arauto”?
Virei consultor de palavras-cruzadas de taxista, pensei meio azedamente. Mas em seguida pensei também que essa devia ser uma função social minha, afinal sou servidor público, e:
- Arauto é uma espécie de mensageiro, alguém que leva e traz novidades.
- Ah!
(Silêncio)
- Tinha uma outra palavra que eu queria perguntar, mas não lembro não.
(Silêncio)
- O-RÁ-CU-LO! O senhor sabe o que é isso?
(Quantas palavras durará essa jornada ao longo da Avenida Recife?)
- Oráculo é, assim, alguém que desvenda sinais, alguém que vê indícios de acontecimentos que a maioria das pessoa não vê.
- Oráculo é isso?
- Se não me falha a memória, sim, mais ou menos isso...
- O senhor sabe se “arauto” vem do grego?
(!!!!)
- Eu não faço idéia, mas não parece grego... melhor consultar um dicionário...
(ao chegar em minha sala fui verificar, e constatei que efetivamente “arauto” vem do francês arcaico ou frâncico, hérault...)
- E qual é um dicionário bom?
- Todo mundo fala do Aurélio, não é? Tem o grandão e o pequeno, que é usado pelas crianças. Recomendo comprar o grandão.
(Silêncio)
- Eu estudei muito pouco na minha vida, mas agora voltei a ler. Quero ler dois livros por dia.
(!!!)
- Mas eu empanco nas palavras. Tem muitas palavras! Eu peço ajuda dos colegas mas é tudo mais “inguinorante”do que eu. Outro dia um deles quase dá em mim, porque eu disse que ele era um “indivíduo”. Ele ficou foi brabo! Agora me diga, qual o problema d’eu chamar ele de indivíduo? “Indivíduo” é aquele que não se divide, é aquele que é uma pessoa, certo?
- Certo...
- Então qual o problema? Ele gritava comigo que eu não chamasse ele de indivíduo, bicho mais inguinorante!
- Às vezes as palavras mudam de sentido, dependendo da situação...
- É?!!!
- Dizer que alguém é um monstro não é propriamente um elogio, mas se eu digo que João Paulo é um “monstro da política”, monstro aí tem outro sentido, não é?
- É...
(Silêncio)
- Eu queria aprender inglês. Tem uns colegas da cooperativa que estão aprendendo, pra atender os americanos. Mas eu não consigo entender nada da “voz”dos americanos! Outro dia um pegou meu taxi e pediu pra ir prum lugar que eu entendi “shopping center Recife”, e levei ele; mas ele queria ir pro “centro do Recife”. Quando eu deixei ele no shopping, ele ficou brabo, gritava, dizia “centro do Recife”, “centro do Recife”, tudo engrolado, mas era escritinho “shopping center Recife”!
- O senhor tenta aprender somente umas poucas frases, e aí vai treinando; quando aprender umas, parte pra outras, ou então fica no feijão-com-arroz mesmo.
- Eu acho que eu não aprendo mais não. É muito difícil! Eu queria aprender muita coisa, mas não cabe em minha cabeça. Queria ler dois livros por dia, mas não dá, tem palavras demais... E agora o senhor disse que ainda mais as palavras mudam...
(Pronto, eu já estava completamente engajado na conversa; poderíamos ter ido até Natal conversando, mas havíamos chegado ao campus da UFPE).
- Quem aprende, gasta tempo aprendendo, não desanime! Aprenda uma coisa todo dia, e o senhor vai ver como irá longe!
- O senhor se incomoda de escrever aqui nesse papelzinho o que o senhor disse de “arauto” e “oráculo”?
- Não, de jeito nenhum, me dê...
(...)
- Muito obrigado, o senhor ensina aqui?
- Já ensinei aqui durante muitos anos, agora ensino na universidade de Natal.
- Ensinar é a coisa mais bonita que tem!
- Obrigado!
- Eu é quem agradeço ao senhor!
- Coragem e progresso em suas leituras!
- Obrigado!
A narrativa acima é verídica, nos limites da dinâmica do conto e do reconto. Infelizmente não fiquei sabendo do nome desse taxista, nem disse a ele o meu. Em meio ao trânsito caótico, em meio à violência de Recife, descubro um taxista em busca de luzes; um taxista-leitor, empenhado de verdade em aprender, consciente do quão árdua é essa empreitada, mas comprometido pra valer com ela. Dedico a ele esse texto, na esperança de que, quem sabe, um dia ele o leia! E a ele, na sua condição pirandelliana de personagem em busca de um autor, agradeço por se deixar capturar para meu texto.

Um comentário:

Taciana disse...

Acabo de assistir o filme brasileiro-uruguaio "El baño del papa", mais um que retrata a realidade de forma tão simples que dói. Dói a ponto de nos fazer justificar a violência diária a que estamos expostos, tal o desespero absurdamente injusto que acomete tantas pessoas dia após dia. E ainda assim, muitas delas ("essa gente que ri quando deve chorar") seguem com coragem e dignidade admiráveis, levando-nos a sentir vergonha de nossos problemicos. "E eu que não creio, peço a Deus por minha gente. É gente humilde, que vontade de chorar."