Eis que surge no horizonte de debates de um de meus grupos web de cinéfilos o já blockbuster Round 6 (https://g.co/kgs/aGMJ3A), produção de outro fenômeno mundial em ascenção (thanks COVID-19), a Netflix. Vi o primeiro episódio e fiquei espantado com o caráter tóxico da proposta. Achei que, até para firmar uma posição minimamente informada, seria necessário pelo menos percorrer outro(s) episódios. No momento em que organizo essa reflexão para mim e para os que me derem o cabimento da leitura, estou lá por volta de pouco mais da metade da série de 9 episódios, mas acho que já basta.
Desde logo asseguro que meu problema com a série não foi a quantidade de hemoglobina livre - eu que sou fã de Quentin Tarantino, onde artérias rompidas a golpes de katana by Hattori Hanzo jorram tanto sangue que as vezes o box doméstico de recepção de streaming precisa passar por uma hemoaspiração. Qual a questão, então? Vamos ao básico, ao central, ao crucial. Qual é o princípio basilar da CIVILIZAÇÃO que emerge com o Iluminismo, esse que busca apoio nas ideias de coletivo, comunidade, cidadania, coisa (res)pública, democracia, estado de direito, tudo desaguando nos direitos de cidadania? Esse princípio é aquele segundo o qual cada ser humano, por essa simples condição, tem o que alguns chamam de “direito natural” (não gosto do termo, mas vou resistir à tentação da digressão aqui), ou direito de cidadania (citoyenneté), ou direito humano de manter-se vivo, graças ao atendimento de necessidades inalienáveis como a alimentação, o alojamento, a educação, a saúde, a justiça. Associado a esse principio vem um outro que é crucial, e que até antecede o momento histórico do Iluminismo, pois remete à ideia de contrato social que tem acompanhado a espécie humana desde que dois caçadores-coletores, graças à intermediação de algum sistema de representação linguageira, puderam combinar alguma coisa entre eles. Por esse princípio do contrato estabelecido, nossos ancestrais conseguiram certa economia de energia (além de algum aumento da expectativa de vida no grupo...) - o usufruto das águas de determinado riacho é compartilhado por dois grupos porque se combinou isso, sem necessidade de, a cada coleta de água, os envolvidos se engalfinharem para decidir quem finalmente levaria água para casa. Em decorrência, eu homem primitivo, passo a conseguir encher meu balde de água não por conta do meu muque, combinado à minha cara assustadora e meu tacape-tronco, e sim por conta de um acordo vigente! É claro que, aqui e ali, havia derrapagens, com retornos aos tacapes, cabeças partidas, baldes usurpados e muita gente morta, mas isso, ao longo da história, começou a se mover na direção de eventos de crise entre tempos de entente. Viva!
Passamos por esse processo histórico civilizatório, mas o homem persiste o lobo de si próprio, não só em termos de recaídas tipo “meu tacape na tua cabeça” como ultima ratio, mas em termos mesmo da montagem de narrativas pretensamente elegantes, redigidas em gênero textual acadêmico, narrativas essas que solapam princípios civilizatórios baseados em princípios assentidos, assumidos, combinados e estabelecidos, em favor do ancestral princípio da lei do mais forte. A lei é igual para todos mas é “mais igual” para alguns; ser pobre se explica em função de uma “cultura da pobreza” e incompetência a ela relacionada; apenas os mais fortes sobrevivem (ou deveriam sobreviver...); óbito também é uma forma de alta médica (notadamente para idosos e outros pouco viáveis...) - essa é recente...; pessoas com necessidades especiais são um estorvo a evitar por parte do coletivo. Eis-nos diante do Darwinismo Social.
Não é caso de nos estendermos aqui sobre o próprio conceito de Darwinismo Social - ele próprio uma importação teórico-conceitual a partir da Biologia Evolucionária Darwinista rumo às ciências político-sociais, economia, ciências jurídicas e gestão pública. A conversa aqui era sobre o pretenso caráter tóxico da série Round 6, e meu Grilo Falante já me adverte que o texto já está bem grandinho... Por hora, que fique estabelecida a seguinte linha de raciocínio: tão violento quanto o comportamento da milícia de periferia, ou do grupo faccionado que administra (de fato) uma prisão do Estado, é a defesa do princípio segundo o qual determinados direitos se assentam em algum tipo de superioridade objetivamente estabelecida. Os racismos estão a um passo, naturalmente. As limpezas étnicas. A eugenia. O direito/dever de descartar os fracos para o bem de um grupo remanescente de fortes, portanto mais forte. O direito/dever de dar a toda e qualquer rationale contrária a esse princípio o caráter de mimimi, associado ao insuportável “politicamente correto”, atraso mental esquerdizante. Em suma: trata-se aqui do direito do mais forte como o direito natural por excelência - até porque encontra na própria natureza, em termos de uma de suas leis mais importantes (a Evolução das Espécies via seleção natural), o seu respaldo último. Eu tenho direito de dar um tiro na sua cara porque você é fraco, e por ser fraco, você perdeu.
Bertolt Brecht, uma das referências maiores da dramaturgia contemporânea, chamava a atenção para o poder do teatro e da teatralização como fonte de “vivência psicossocial vicária” para a plateia - um faz de conta que nos proporciona um gozo real. Round 6 é tóxico porque oferece a experiência de distribuir tiros a rodo para aqueles que perdem. Porque a condição fundamental para permanecer vivo é ganhar - e não ter um tal de direito humano à vida, em si e por si. Os jogos notabilizados pela série (todos inocentes joguinhos de criança...) metaforizam os diversos desafios e demandas da vida, e desmetaforizam as situações em que nós, quando crianças, gritávamos para os amiguinhos e amiguinhas perdedores “VOCÊ MORREU!!!”. Na série, uma voz parecida com essas vozes de aeroportos e repartições públicas recita em idioma coreano, sem qualquer emoção, logo após o disparo de um tiro de revólver: “candidato número x - eliminado” ...
O cinema e o teatro são tóxicos na medida em que naturalizam situações que deveriam passar por crivo crítico, para o bem do Estado, para o bem dos indivíduos. O princípio segundo o qual only the strongest survive representam uma dessas situações, acompanhada inclusive da mensagem subliminar segundo a qual numa sociedade que passa numa imensa máquina de moer carne aqueles em dívida bancária, aqueles sem meios de consumo (desempregados), aqueles adoecidos e sem seguro-saúde, numa sociedade assim, a saída é “jogar”, mesmo em se tratando de um jogo em completa oposição em relação aos princípios mais básicos dessa tal de Civilização Contemporânea. Jogar, tudo considerado, é a saída conservadora, individualista e conformista por excelência. Um dos personagens diz, numa das cenas, logo no início: “Nesses jogos há pelo menos uma chance de ganhar alguma coisa, diferentemente do que se passa lá fora, em que não há esperança nenhuma”. Uma possibilidade de escape crítico dessa essa falsa dicotomia fica tão abstrata quanto a terceira margem de um rio.
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