Da mesma forma como os sonhos se alimentam de restos diurnos, esta curta encenação em 3 atos se alimenta de restos de interações nas redes sociais que têm intermediado as nossas interações nesses tempos atuais. Aqui e ali algum leitor terá aquela sensação de familiaridade - às vezes tão forte que a voz interna acenderá a luz amarela do “EPA!!!”.
Os personagens aqui encenados são Maximiliano e Jaime. Ambos estão em sala de cuidados paliativos em hospital privado de uma cidade de médio-grande porte do Brasil. Ambos estão em fase terminal decorrente de doença grave. Estão lúcidos, pelo menos de um ponto de vista médico... Maximiliano é oficial reformado da Marinha do Brasil, da qual saiu para a reserva na patente de Almirante de Esquadra. Jaime é professor universitário, vinculado a instituição federal de ensino superior, no grau de professor-titular de um departamento vinculado às ciências humanas.
A encenação se passa na contemporaneidade imediata (dias ANTES do segundo turno da eleição para presidente e governadores no Brasil, em 30 de outubro de 2022).
[M e J olham fixamente para o teto por um certo tempo. Quase que simultaneamente, resolvem olhar quem está ao lado, os olhares se cruzam e, constrangidamente, voltam a fitar o teto. M rompe o silêncio].
M: Envelhecer é uma merda mesmo...
(Pausa)
J: Depende...
M: É SEMPRE (enfático) uma merda! Só que às vezes é uma merda ainda mais merda, como nessa situação em que estamos (pigarreia), quer dizer, estou...
J: (riso contido) Pode me incluir aí... Não estou aqui a passeio... Câncer. Fase terminal.
M: Mesma merda. E olha que me cuidei a vida inteira! Me sinto injustiçado...
J: Eu tentei ser bem-comportado aqui e ali, sem fumar, bebendo pouco...
M: Eu parei COMPLETAMENTE de beber há 20 anos!!!
J: Nem uma cervejinha? Um vinhozinho? Vinho faz bem ao coração, né não?
M: ZERO! Nada! Minha perdição era o uísque... Quase arruína minha carreira.
(Silêncio. Pausa).
M: Sou o Almirante de esquadra na reserva Maximiliano, a seu dispor!
(Nova Pausa).
J: Sou Jaime, professor-titular em universidade pública, em licença para tratamento médico, e sem muita esperança de voltar...
(Pausa mais longa).
J: Sempre achei a Marinha uma das armas mais ... (pausa curta) arejadas... (riso contido)
M: A Aeronáutica é mais! É a arma mais civil... Já o Exército é bronca... (risos).
(Pausa)
M: Tenho mestrado e doutorado na área de tecnologia de informação embarcada...
J: Bom! Tenho doutorado e pós-doutorado em minha área.
M: Educação é importante, porque é o caminho da competência. Competência é tudo. Quer dizer, quase tudo. Competência e vergonha na cara. O Brasil precisa de um freio de arrumação urgente.
J: Ah, precisa sim!
(Pausa)
M: Sempre amei meu trabalho - navegar, cuidar de minha embarcação, de minha equipagem... A vida sempre ficava mais simples em mar aberto...
J: Também nunca soube viver fora do campus, da sala de aula, da formação dos meus alunos...
M: Mas além de competência e educação, é preciso ter RESPEITO.
J: Concordo. Sobretudo respeito por aquilo que a gente combinou respeitar...
M: Respeito por VALORES.
J: Sim.
M: Vamos fazer uma cesta de valores aqui, pra passar o tempo. Eu digo um, você diz outro. Pode ser?
J: Vamos lá! Posso propor uma combinação?
M: Ih... (riso breve). Diga lá!
J: Proponho que um não critique a proposta do outro. Apenas contraponha a sua. Depois a gente pode fazer outra coisa...
M: Concordo. Vá la. comece!
(Pausa curta)
J: RESPEITO À DEMOCRACIA!
M: RESPEITO A DEUS!
J: Peço um esclarecimento: QUALQUER Deus?
M: Como qualquer Deus? Só há UM DEUS, o Deus cristão.
J: Então posso entender que o senhor propôs “RESPEITO AO DEUS CRISTÃO”, certo?
M: Certo, mas acho redundante “Deus Cristão”... Mas vá lá...
J: RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS.
M: Agora é minha vez de pedir um esclarecimento: um BANDIDO (ênfase) deve ter os MESMOS DIREITOS HUMANOS de uma pessoa do BEM? Esse respeito de que o senhor fala vale pros dois do mesmo jeito?
J: Quer uma resposta curta ou uma resposta longa?
M: Curta. Não estamos aqui para plantar carvalhos, e sim para plantar pés de coentro...
J: Então é SIM.
(Pausa)
M: RESPEITO À FAMÍLIA. Mas já vou logo dizendo, sem nem mesmo o senhor pedir esclarecimento: falo aqui da FAMÍLIA tradicional, normal, com um pai homem, uma mãe mulher, os filhos e outros parentes pra cima e de lado. Não incluo aqui a abominação da família oriunda de casamentos gays. Porque o homossexualismo é uma doença, uma abominação, um atentado à natureza.
(Pausa)
J: RESPEITO À DIVERSIDADE DE GÊNERO. A condição de heterossexual é somente uma dentre muitas outras.
M: O senhor está me criticando? Olha a regra de nosso jogo!!!
J: Não, estou confrontando... É diferente... A gente não propôs jogar aberto? Eu não consigo desligar seus aparelhos, e nem você consegue desligar os meus... (Os dois riem alto...). Então estamos à salvo um do outro...
M: Mas acho que estamos perto de chegar no limite dessa brincadeira...
J: Pode ser, mas ainda dá pra ir em frente... É sua vez!
M: RESPEITO à MORAL e aos BONS COSTUMES!
(Pausa)
J: RESPEITO ÀS LEIS E SOBRETUDO À CONSTITUIÇÃO.
M: Posso pedir um esclarecimento?
J: Sim, já faz parte...
M: Esse respeito à Constituição não deveria poder ser suspenso quando se avaliar que algum de seus princípios está errado, ou envelheceu?
J: Poderia ser revisto nos termos que ela, a Constituição, estabelece. NUNCA por deliberação por fora dessa regra. Nunca por golpe.
M: E quando os termos que a Constituição estabelece estiver nas mãos de um grupo de políticos corruptos?
J: Se trabalha para mudar esse grupo.
M: E se houver urgência?
J: A urgência maior é a preservação da Constituição.
(Pausa)
M: RESPEITO ao PRINCÍPIO DE PROTEÇÃO DA SOCIEDADE, mesmo passando por cima de uma Constituição, tribunais e políticos.
J: Estou com medo de pedir ao senhor para esclarecer o que quis dizer com “passar por cima da Constituição”...
M: Não pergunte aquilo cuja resposta você conhece. Já deu pra ver que você é um homem inteligente...
Luzes se intensificam no ambiente, entram enfermeiras com medicamentos:
ENFERMEIRA: Como estão esses meninos? Vejo que já ficaram amiguinhos! (Risos gerais). Hora de trocar medicação e do asseio.
Black-out.
ATO II - Distanciamento, Estranhamento
J: Bom-dia, Almirante - está acordado? Está em forma?
M: Hummm ... Médio...
J: Vamos retomar nosso jogo da cesta de valorers? Agora não são mais valores a coletar, e sim princípios, comportamentos, regras e descartar, a jogar fora, combater, por aí. Tá nessa?
M: Meu humor não está dos melhores hoje... Já vi que o senhor é uma pessoa com quem até dá para conversar, mas acho que nossa conversa não tem futuro...
J: Ora, vamos até onde der... Talvez até morramos antes... (Risos) Talvez não ganhemos nada com isso, mas também não vejo o que mais possamos perder.
M: Então vou começar logo chutando o pau da barraca: CORRUPÇÃO, LADROAGEM, USO ESCROTO DO DINHEIRO PÚBLICO.
J: Eita! Vou aderir! Estou nessa também.
M: Hum, sei...
J: Se controle, olhe a regra sagrada: nenhum dos dois ataca o outro! Sua vez de novo: outra coisa a se ver livre.
M: COMUNISMO
J: FASCISMO
M: Peço esclarecimento: Comunismo e Fascismo não são uma mesma coisa?
J: Não. E nem vamos resolver isso aqui, não temos tempo e nem energia. Façamos assim: você troca em miúdos o que chama de “Comunismo”, associando no máximo três palavras -chave, e eu faço o mesmo com “Fascismo”. Bora?
M: Pode ser. Lá vai: COMUNISMO: 1. Desrespeito à propriedade privada; 2. Banda-voou moral, todo mundo come todo mundo; 3. Ódio aos ricos e à religião.
J: Eu agora: FASCISMO: 1. Endeusamento de líderes que viram mitos; 2. Autoritarismo dos mitos e de sua curriola; 3. Violência contra quem discorda.
(Silêncio)
J: Vamos prosseguir? Lá vou eu: NEGACIONISMO anti-científico.
M: CULTURA DO POLITICAMENTE CORRETO.
J: RACISMO.
M: Esclarecimento: você concorda haver diferenças entre raças? A história mostra o quanto os índios eram preguiçosos, os negros indisciplinados e chegados a uma safadeza. Não haveria diferenças em função da raça?
J: Pode haver diferenças entre raças, entre nacionalidades e culturas, mas estas diferenças são dinâmicas e devidas à sociedade, à cultura e à história, e não ao código genético. E quaisquer que sejam essas diferenças, não dá pra falar de superioridade ou inferioridade de nenhuma raça sobra outra.
M: Entendi, mas não concordo completamente. Negros nasceram para os esportes de terra, brancos para a natação, pegando um exemplo olímpico... Algumas raças têm vocação para umas coisas, outras têm vocação para outras... Como no caso dos cachorros e dos cavalos...
J: O senhor se tornou almirante por vocação?
M: Talvez... Difícil dizer...
J: Pois é, então no mínimo vamos dar a esse assunto o benefício da dúvida... Sua vez de falar a próxima coisa a jogar no mar...
M: Eita... acho que chegou nossa hora H...
J: Será?
M: Vou falar o que proponho jogar no mar: LULA e a PETRALHADA!
J: BOLSONARO e a patota de BOLSOMINIONS!
(Pausa. Silêncio)
M: Eu sabia eu a gente ia terminar nisso. Botei os olhos no senhor e já sabia...
J: É, eu também achava que mais cedo ou mais tarde a gente ia chegar nesse ponto. O que fazemos agora? Na nossa situação, não dá nem pra um esmurrar o outro, ou dar um tiro, ou escangalhar o carro do outro, ou ir barbarizar nas redes sociais, ou cancelar um ao outro, ou mesmo sair fora. Não temos para onde ir. É ficar em silêncio ou continuar noutra conversa - mas qual? A gente podia também gastar um tempo com um xingando o outro, mas não tenho ânimo.
M: Em outras ocasiões em que estive com gente de seu time, a fase seguinte foi mesmo o xingamento e o afastamento. Quando não coisa pior.
J: Tenho de admitir que comigo, foi parecido.
M: Petralha / Petista / Lulista sempre foram para mim sinônimos de filhos de uma puta.
J: Bolsominion / Bolsonarista idem. Além da suspeição de serem completos idiotas.
M: O que mudou aqui? A vizinhança da morte? Efeito da morfina?
J: Acho que essas coisas sim, sem dúvida. Mas talvez nós dois tenhamos construído um lugar de conversa, apesar de TUDO.
(Pausa)
M: O que nos separa é a convicção de que o outro não somente é diferente, mas está ERRADO.
J: Isso mesmo. Pra mim, suas crenças são cheias de equívocos e inexatidões.
M: Penso o mesmo sobre as suas.
J: Lá fora, as pessoas estão não somente se estranhando, mas se odiando, e se encaminhando para exterminar umas às outras. Nós aqui nesse espaço não chegamos à etapa do aniquilamento do outro - sabemos que não queremos isso. Mas por quê? Porque já estamos com o pé na cova? Porque o câncer traz a iminência da morte, e aí torna as pessoas solidárias, melhores?
M: Acho que é mais do que isso.
J: Vamos fazer outro exercício. Vamos tentar localizar pontos que nos UNEM e nos protegem da destrutividade um do outro. Eu começo nessa tentativa (pausa): PAZ
M: Eu concordo! Todo militar sabe que a guerra é, no fundo, um caminho para a paz. Mas paz SEM humilhação, sem desrespeito. Então proponho RESPEITO.
J: Eu concordo! Respeito ao direito do outro EXISTIR. Respeito a PRINCIPIOS BÁSICOS. Vamos a eles: PRINCÍPIO DO RESPEITO À VERDADE.
M: Todos nós temos vivido movidos à produção de mentiras. A mentira como arma de combate. Proponho PRINCÍPIO do RESPEITO À VIDA.
J: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO à NATUREZA.
M: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO À SOBERANIA DO BRASIL.
J: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO A CONDIÇÕES MINIMAS DE CIDADANIA PARA TODOS.
M: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO às FORÇAS ARMADAS EM SEUS QUATRO PILARES, a HIERARQUIA, a DISCIPLINA, a OBEDIÊNCIA intra-corporação e a obediência à PÁTRIA acima de TUDO e TODOS.
(Silêncio longo).
J: Acho que desenhamos no chão um lugar possível onde conviver...
M: Mesmo sabendo que por dentro de cada coisa que cada um disse, mora a ameaça dos entendimentos e interpretações diversas.
J: Há também o perigo da infiltração da má fé. Não somos santos. Muitos de nós são do mal, e transformarão em merda tudo o que tocarem.
M: Mas aqui e agora convivo com a ideia de que você NÃO É do mal, e nem está tentando me ludibriar - apesar de estar ERRADO quanto a um tanto de aspectos.
J: Digo de você a mesmíssima coisa. A questão é: o terreno de convivência esboçada aqui sobrevive ao mundo real dos que não estão com a morte no horizonte próximo?
M: ... e mesmo nós: esse terreno de convivência sobrevive ao dia seguinte a 30 de outubro, quando um de nós terá seu candidato derrotado, e ou outro candidato eleito vencedor?
Luzes se intensificam, entra em cena a enfermeira para os cuidados de praxe.
Black-out
ATO III - Frustração e raiva, Alívio e alegria, Vida que segue.
Maximiliano e Jaime conseguiram fazer instalar um aparelho de TV na parede da sala de cuidados intensivos. Estamos às 20:30hs da noite do dia 30 de outubro de 2022. Num noticiário da TV, a voz de um locutor anuncia:
LOCUTOR: E Atenção! Boletim do Tribunal Superior Eleitoral acaba de ser divulgado, e informa acerca da conclusão da totalização da contagem dos votos válidos para presidência da república. Com a maioria destes votos, está eleito presidente da república...
Luiz Inácio Lula da Silva
J: PORRAAAAA!!!!!
M: Meus Deus, esse povo brasileiro vota como quem caga! Eleger um ladrão!!!!
J: Almirante, você sabe, primeiro, que ladrão por ladrão, o derrotado não fica a dever! Segundo, os julgamentos foram feitos por um juiz de merda. Terceiro, os demais que roubaram, foram enquadrados e cumprem pena. Então é. seguinte: Lula foi eleito, não foi? VAI ACEITAR?
M: Vou aguardar relatório da Defesa quanto às urnas. A depender disso, é o caso mesmo de aceitar, mesmo que muito a contragosto. Difícil ver, mais uma vez, que muitos nesse Brasil NÃO SABEM votar!!!!
J: Vamos para nova etapa da história. Bolsonaro, você sabe disso, foi um péssimo militar que nunca inspirou vocês, e que vocês engoliram como mal menor. Mas mostrou-se um mal bem maior. Tenho a esperança de que poderemos reconstruir umas tantas coisas, tirar o Brasil da rota de apequenamento em que vinha.
M: Pra muitos de vocês também, Lula é um mal menor. Você sabe disso. Não me venha santificar esse sapo barbudo agora. Vamos retornar à esquerdização desse país, isso é o que mais me entristece.
J. Não seremos nós que viveremos para ver, infelizmente! Tenho a firme esperança que caminharemos para o melhor. Não para o perfeito, somente para o melhor. Um Brasil democrático, justo, combativo e respeitável, acima de tudo.
(Pausa)
M: Lamento não poder lhe dar os parabéns, não consigo, não tenho estômago para isso. Nem sei nem se o presidente Bolsonaro terá estômago para entregar a faixa.
J: Essa é uma obrigação de estadista, não de pessoa A ou B. Mas ele não tem mesmo essa estatura. Quero somente que você respeite o jogo. Seria o que você quereria de mim, caso o resultado fosse outro - não seria?
M: Seria sim. Caso se confirme que tudo correu bem com as urnas, conte com ESSE meu respeito às regras do jogo, e não ao que ele produziu.
J: Conte, de volta, com meu respeito, com alívio por certo, mas sem escárnio.
Jair Messias Bolsonaro
M: CARALHO!!!!
J: Como é possível uma merda dessa? Como foi que deixamos isso acontecer? Eleger um genocida incompetente!
M: Foi eleito, não foi? Temos de aceitar e passar à etapa seguinte. ACABOU!
J: Não acabou. O desastre somente continua. E se dependesse de mim, esse crápula não teria sossego.
M: Trata-se do presidente eleito de seu país: RESPEITE!
J: Não merece respeito, nem antes, nem agora e nem nunca.
M: Mas você não pregava o respeito às regras do jogo? Tem de aceitar, tem de respeitar...
J: Não proponho golpe, como o outro lado iria propor, se tivesse perdido. Proponho oposição ferrenha dos que ficarem, porque nesse tempo eu não vou mais estar aqui. Pelo menos essa merda me ajudou a aceitar a morte...
M: Começa outra etapa da história. Tenho esperança de que, afastado o mal maior da ameaça comunista e do retorno de um governo de petralhas, vamos fazer melhor.
J: Vamos de fato avançar no desmonte do estado democrático no Brasil. Com o aval do resultado dessa eleição, isso é o que mais me entristece.
M: Não seremos nós que viveremos para ver, infelizmente. Tenho a firme esperança que caminharemos para o melhor. Não para o perfeito, somente para o melhor. Pátria acima de tudo, Deus acima de todos.
J: Pobre do Brasil. Tomara que os que vão ficar aceitem que a luta continua. Brasil democrático, justo e combativo acima de tudo!
(Pausa)
Lamento não poder lhe dar os parabéns que, em situação mais civilizada, seria o caso de dar. Além do mais, parabenizar quem quer que seja, nessa situação, seria quase imoral para mim.
M: Quero somente que você respeite jogo. Seria o que você quereria de mim, caso o resultado fosse outro - não seria?
J: Seria sim. Conte com o respeito que não sei se os seus correligionários de direita teriam a grandeza de oferecer.
M: Conte, de volta, com meu respeito, com alívio por certo, mas sem escárnio.
[As luzes arrefecem completamente. Abre-se foco sobre o Cego Tirésias, em primeiro plano:]
Cego Tirésias: Pra quem não me conhece, sou o Cego Tirésias, em participação especial aqui, fugido do script da tregédia grega Antígona, de Sófocles. Não estou aqui para prenunciar qualquer tragédia - que todos os panteões de deuses história afora livrem vocês brasileiros disso! Venho aqui somente para cumprir a função de “comentador” e arauto, que as tragédias gregas brilhantemente inventaram.
(O Cego Tirésias toma um copo d’água, trazido pela enfermeira da encenação, tempera a garganta, e continua).
Cego Tirésias: Neste momento em que me dirijo a vocês, o ato III dessa pantomima ainda não se terá consumado. Mas seja ele qual for, TRÊS coisas podem ser ditas aqui e agora - até porque elas deverão ser ditas de novo tão logo o futuro vire presente. E as três persistirão válidas.
PRIMEIRO: Nenhum país se define, se confirma e se limita a seus HERÓIS, e nem tampouco a seus VILÕES, BANDIDOS, ANTI-HERÓIS. Nem Bolsonaro nem Lula têm estofo para dar conta de todo o BRASIL. Não será por eles, apesar deles ou graças a eles que a história de vocês sofrerá inflexão decisiva. Cabe a vocês, povo brasileiro, costurar o futuro no tear da luta de todos e cada um.
(O Coro se manifesta):
Coro: Cabe a vocês, povo brasileiro, costurar o futuro no tear da luta de todos e cada um!
SEGUNDO: a demonização de uns e de outros, vencedores ou perdedores, perdedores ou vencedores, somente servirá para dissipar uma energia preciosa, que vocês não terão como repor. Vocês, Jaimes e Maximilianos, não precisam passar a se apreciar minimamente - basta que preservem o contexto de respeito a princípios que conseguiram esboçar. Não percam de vista que estão todos na mesma Nau Brasil.
Coro: Não percam de vista que estão todos na mesma Nau Brasil!
TERCEIRO: A noite desse dia histórico já se vai e surge um novo dia. Novo não tanto pelo tanto de esperança compartilhada - o dia nasce com um país dividido e às voltas com emoções díspares. Novo simplesmente porque abre um capítulo inédito (apesar das inevitáveis repetições) numa história que se escreve a todas as mãos, e que prossegue.
Lembrem-se do que lhes falei no texto de Antígona: Doce é dar ouvidos a quem nos fala, se é para nosso proveito. Que todos e todas se mostrem à altura do potencial desse país. Que esse potencial seja imenso!
Coro: Doce é dar ouvidos a quem nos fala, se é para nosso proveito. Que todos e todas se mostrem à altura do potencial desse país. Que esse potencial seja imenso!
[Maximiliano e Jaime se erguem lentamente dos respectivos leitos, desconectam os sensores dos aparelhos de seus corpos, contornam o leito e, sem confraternização, apenas em paz, desaparecem no plano de fundo do ambiente de encenação. Começa a tocar canção de escolha do montador, a enfermeira entra, dançante, com cartaz de pedido de apoio à causa do piso salarial das enfermeiras brasileiras, no novo tempo que se anuncia. O samba decresce, a iluminação arrefece.]
FIM
Jorge Falcão
Natal (RN), em 22/10/2022.
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