sexta-feira, 28 de outubro de 2022

“Cada um a seu modo” (em honra, empréstimo e epígrafe a Luigi Pirandello): Dois personagens à procura de um Brasil


Prólogo:

Da mesma forma como os sonhos se alimentam de restos diurnos, esta curta encenação em 3 atos se alimenta de restos de interações nas redes sociais que têm intermediado as nossas interações nesses tempos atuais. Aqui e ali algum leitor terá aquela sensação de familiaridade - às vezes tão forte que a voz interna acenderá a luz amarela do “EPA!!!”.

Os personagens aqui encenados são Maximiliano e Jaime. Ambos estão em sala de cuidados paliativos em hospital privado de uma cidade de médio-grande porte do Brasil. Ambos estão em fase terminal decorrente de doença grave. Estão lúcidos, pelo menos de um ponto de vista médico... Maximiliano é oficial reformado da Marinha do Brasil, da qual saiu para a reserva na patente de Almirante de Esquadra. Jaime é professor universitário, vinculado a instituição federal de ensino superior, no grau de professor-titular de um departamento vinculado às ciências humanas. 

A encenação se passa na contemporaneidade imediata (dias ANTES do segundo turno da eleição para presidente e governadores no Brasil, em 30 de outubro de 2022). 

ATO I - Encontro, Colisões

Setting: Sala coletiva de cuidados paliativos em serviço hospitalar de cidade brasileira, com 6 leitos disponíveis, dois leitos ocupados por Jaime e Maximiliano, que estão lado a lado. Os demais leitos estão vagos. Os pacientes estão conectados a dispositivos de vigilância de sinais vitais; estão despertos. Reina completo silêncio no ambiente, exceto pelos bips ocasionais dos aparelhos de vigilância. Os personagens serão doravante identificados por M (Maximiliano) e J (Jaime). 

[M e J olham fixamente para o teto por um certo tempo. Quase que simultaneamente, resolvem olhar quem está ao lado, os olhares se cruzam e, constrangidamente, voltam a fitar o teto. M rompe o silêncio]. 

M: Envelhecer é uma merda mesmo... 
(Pausa)
J: Depende... 
M: É SEMPRE (enfático) uma merda! Só que às vezes é uma merda ainda mais merda, como nessa situação em que estamos (pigarreia), quer dizer, estou...
J: (riso contido) Pode me incluir aí... Não estou aqui a passeio... Câncer. Fase terminal.
M: Mesma merda. E olha que me cuidei a vida inteira! Me sinto injustiçado... 
J: Eu tentei ser bem-comportado aqui e ali, sem fumar, bebendo pouco...
M: Eu parei COMPLETAMENTE de beber há 20 anos!!! 
J: Nem uma cervejinha? Um vinhozinho? Vinho faz bem ao coração, né não?
M: ZERO! Nada! Minha perdição era o uísque... Quase arruína minha carreira.
(Silêncio. Pausa).

M: Sou o Almirante de esquadra na reserva Maximiliano, a seu dispor!
(Nova Pausa).

J: Sou Jaime, professor-titular em universidade pública, em licença para tratamento médico, e sem muita esperança de voltar... 
(Pausa mais longa).

J: Sempre achei a Marinha uma das armas mais ... (pausa curta) arejadas... (riso contido)
M: A Aeronáutica é mais! É a arma mais civil... Já o Exército é bronca... (risos).

(Pausa)

M: Tenho mestrado e doutorado na área de tecnologia de informação embarcada...
J: Bom! Tenho doutorado e pós-doutorado em minha área.
M: Educação é importante, porque é o caminho da competência. Competência é tudo. Quer dizer, quase tudo. Competência e vergonha na cara. O Brasil precisa de um freio de arrumação urgente. 
J: Ah, precisa sim! 
(Pausa)

M: Sempre amei meu trabalho - navegar, cuidar de minha embarcação, de minha equipagem... A vida sempre ficava mais simples em mar aberto... 
J: Também nunca soube viver fora do campus, da sala de aula, da formação dos meus alunos...
M: Mas além de competência e educação, é preciso ter RESPEITO. 
J: Concordo. Sobretudo respeito por aquilo que a gente combinou respeitar... 
M: Respeito por VALORES. 
J: Sim.
M: Vamos fazer uma cesta de valores aqui, pra passar o tempo. Eu digo um, você diz outro. Pode ser?
J: Vamos lá! Posso propor uma combinação?
M: Ih... (riso breve). Diga lá!
J: Proponho que um não critique a proposta do outro. Apenas contraponha a sua. Depois a gente pode fazer outra coisa...
M: Concordo. Vá la. comece!  
(Pausa curta)
J: RESPEITO À DEMOCRACIA!
M: RESPEITO A DEUS! 
J: Peço um esclarecimento: QUALQUER Deus?
M: Como qualquer Deus? Só há UM DEUS, o Deus cristão. 
J: Então posso entender que o senhor propôs “RESPEITO AO DEUS CRISTÃO”, certo?
M: Certo, mas acho redundante “Deus Cristão”... Mas vá lá...
J: RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS.
M: Agora é minha vez de pedir um esclarecimento: um BANDIDO (ênfase) deve ter os MESMOS DIREITOS HUMANOS de uma pessoa do BEM? Esse respeito de que o senhor fala vale pros dois do mesmo jeito?
J: Quer uma resposta curta ou uma resposta longa?
M: Curta. Não estamos aqui para plantar carvalhos, e sim para plantar pés de coentro...
J: Então é SIM. 
(Pausa)
M: RESPEITO À FAMÍLIA. Mas já vou logo dizendo, sem nem mesmo o senhor pedir esclarecimento: falo aqui da FAMÍLIA tradicional, normal, com um pai homem, uma mãe mulher, os filhos e outros parentes pra cima e de lado. Não incluo aqui a abominação da família oriunda de casamentos gays. Porque o homossexualismo é uma doença, uma abominação, um atentado à natureza. 
(Pausa)
J: RESPEITO À DIVERSIDADE DE GÊNERO. A condição de heterossexual é somente uma dentre muitas outras. 
M: O senhor está me criticando? Olha a regra de nosso jogo!!! 
J: Não, estou confrontando... É diferente... A gente não propôs jogar aberto? Eu não consigo desligar seus aparelhos, e nem você consegue desligar os meus... (Os dois riem alto...). Então estamos à salvo um do outro... 
M: Mas acho que estamos perto de chegar no limite dessa brincadeira...
J: Pode ser, mas ainda dá pra ir em frente... É sua vez!
M: RESPEITO à MORAL e aos BONS COSTUMES! 
(Pausa)
J: RESPEITO ÀS LEIS E SOBRETUDO À CONSTITUIÇÃO. 
M: Posso pedir um esclarecimento?
J: Sim, já faz parte...
M: Esse respeito à Constituição não deveria poder ser suspenso quando se avaliar que algum de seus princípios está errado, ou envelheceu? 
J: Poderia ser revisto nos termos que ela, a Constituição, estabelece. NUNCA por deliberação por fora dessa regra. Nunca por golpe.
M: E quando os termos que a Constituição estabelece estiver nas mãos de um grupo de políticos corruptos? 
J: Se trabalha para mudar esse grupo.
M: E se houver urgência? 
J: A urgência maior é a preservação da Constituição.
(Pausa)
M: RESPEITO ao PRINCÍPIO DE PROTEÇÃO DA SOCIEDADE, mesmo passando por cima de uma Constituição, tribunais e políticos. 
J: Estou com medo de pedir ao senhor para esclarecer o que quis dizer com “passar por cima da Constituição”...
M: Não pergunte aquilo cuja resposta você conhece. Já deu pra ver que você é um homem inteligente... 
Luzes se intensificam no ambiente, entram enfermeiras com medicamentos:
ENFERMEIRA: Como estão esses meninos? Vejo que já ficaram amiguinhos! (Risos gerais). Hora de trocar medicação e do asseio.

Black-out.

ATO II - Distanciamento, Estranhamento

J: Bom-dia, Almirante - está acordado? Está em forma? 
M: Hummm ... Médio... 
J: Vamos retomar nosso jogo da cesta de valorers? Agora não são mais valores a coletar, e sim princípios, comportamentos, regras e descartar, a jogar fora, combater, por aí. Tá nessa? 
M: Meu humor não está dos melhores hoje... Já vi que o senhor é uma pessoa com quem até dá para conversar, mas acho que nossa conversa não tem futuro... 
J: Ora, vamos até onde der... Talvez até morramos antes... (Risos) Talvez não ganhemos nada com isso, mas também não vejo o que mais possamos perder. 
M: Então vou começar logo chutando o pau da barraca: CORRUPÇÃO, LADROAGEM, USO ESCROTO DO DINHEIRO PÚBLICO.
J: Eita! Vou aderir! Estou nessa também.
M: Hum, sei... 
J: Se controle, olhe a regra sagrada: nenhum dos dois ataca o outro! Sua vez de novo: outra coisa a se ver livre. 
M: COMUNISMO
J: FASCISMO
M: Peço esclarecimento: Comunismo e Fascismo não são uma mesma coisa? 
J: Não. E nem vamos resolver isso aqui, não temos tempo e nem energia. Façamos assim: você troca em miúdos o que chama de “Comunismo”, associando no máximo três palavras -chave, e eu faço o mesmo com “Fascismo”. Bora?
M: Pode ser. Lá vai: COMUNISMO: 1. Desrespeito à propriedade privada; 2. Banda-voou moral, todo mundo come todo mundo; 3. Ódio aos ricos e à religião. 
J: Eu agora: FASCISMO: 1. Endeusamento de líderes que viram mitos; 2. Autoritarismo dos mitos e de sua curriola; 3. Violência contra quem discorda. 
(Silêncio)
J:  Vamos prosseguir? Lá vou eu: NEGACIONISMO anti-científico.
M: CULTURA DO POLITICAMENTE CORRETO. 
J: RACISMO.
M: Esclarecimento: você concorda haver diferenças entre raças? A história mostra o quanto os índios eram preguiçosos, os negros indisciplinados e chegados a uma safadeza. Não haveria diferenças em função da raça? 
J: Pode haver diferenças entre raças, entre nacionalidades e culturas, mas estas diferenças são dinâmicas e devidas à sociedade, à cultura e à história, e não ao código genético. E quaisquer que sejam essas diferenças, não dá pra falar de superioridade ou inferioridade de nenhuma raça sobra outra. 
M: Entendi, mas não concordo completamente. Negros nasceram para os esportes de terra, brancos para a natação, pegando um exemplo olímpico...  Algumas raças têm vocação para umas coisas, outras têm vocação para outras... Como no caso dos cachorros e dos cavalos...
J: O senhor se tornou almirante por vocação?
M: Talvez... Difícil dizer...
J: Pois é, então no mínimo vamos dar a esse assunto o benefício da dúvida... Sua vez de falar a próxima coisa a jogar no mar... 
M: Eita... acho que chegou nossa hora H... 
J: Será?
M: Vou falar o que proponho jogar no mar: LULA e a PETRALHADA!
J: BOLSONARO e a patota de BOLSOMINIONS! 
(Pausa. Silêncio)

M: Eu sabia eu a gente ia terminar nisso. Botei os olhos no senhor e já sabia...
J: É, eu também achava que mais cedo ou mais tarde a gente ia chegar nesse ponto. O que fazemos agora? Na nossa situação, não dá nem pra um esmurrar o outro, ou dar um tiro, ou escangalhar o carro do outro, ou ir barbarizar nas redes sociais, ou cancelar um ao outro, ou mesmo sair fora. Não temos para onde ir. É ficar em silêncio ou continuar noutra conversa - mas qual? A gente podia também gastar um tempo com um xingando o outro, mas não tenho ânimo. 
M: Em outras ocasiões em que estive com gente de seu time, a fase seguinte foi mesmo o xingamento e o afastamento. Quando não coisa pior. 
J: Tenho de admitir que comigo, foi parecido. 
M: Petralha / Petista / Lulista sempre foram para mim sinônimos de filhos de uma puta.
J: Bolsominion / Bolsonarista idem. Além da suspeição de serem completos idiotas. 
M: O que mudou aqui? A vizinhança da morte? Efeito da morfina? 
J: Acho que essas coisas sim, sem dúvida. Mas talvez nós dois tenhamos construído um lugar de conversa, apesar de TUDO.
(Pausa)
M: O que nos separa é a convicção de que o outro não somente é diferente, mas está ERRADO. 
J: Isso mesmo. Pra mim, suas crenças são cheias de equívocos e inexatidões. 
M: Penso o mesmo sobre as suas. 
J: Lá fora, as pessoas estão não somente se estranhando, mas se odiando, e se encaminhando para exterminar umas às outras. Nós aqui nesse espaço não chegamos à etapa do aniquilamento do outro - sabemos que não queremos isso. Mas por quê? Porque já estamos com o pé na cova? Porque o câncer traz a iminência da morte, e aí torna as pessoas solidárias, melhores? 
M: Acho que é mais do que isso.
J: Vamos fazer outro exercício. Vamos tentar localizar pontos que nos UNEM e nos protegem da destrutividade um do outro. Eu começo nessa tentativa (pausa): PAZ
M: Eu concordo! Todo militar sabe que a guerra é, no fundo, um caminho para a paz. Mas paz SEM humilhação, sem desrespeito. Então proponho RESPEITO. 
J: Eu concordo! Respeito ao direito do outro EXISTIR. Respeito a PRINCIPIOS BÁSICOS. Vamos a eles: PRINCÍPIO DO RESPEITO À VERDADE.
M: Todos nós temos vivido movidos à produção de mentiras. A mentira como arma de combate. Proponho PRINCÍPIO do RESPEITO À VIDA. 
J: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO à NATUREZA.
M: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO À SOBERANIA DO BRASIL.
J: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO A CONDIÇÕES MINIMAS DE CIDADANIA PARA TODOS.
M: Proponho o PRINCÍPIO DO RESPEITO às FORÇAS ARMADAS EM SEUS QUATRO PILARES, a HIERARQUIA, a DISCIPLINA, a OBEDIÊNCIA intra-corporação e a obediência à PÁTRIA acima de TUDO e TODOS. 
(Silêncio longo).

J: Acho que desenhamos no chão um lugar possível onde conviver...
M: Mesmo sabendo que por dentro de cada coisa que cada um disse, mora a ameaça dos entendimentos e interpretações diversas.
J: Há também o perigo da infiltração da má fé. Não somos santos. Muitos de nós são do mal, e transformarão em merda tudo o que tocarem. 
M: Mas aqui e agora convivo com a ideia de que você NÃO É do mal, e nem está tentando me ludibriar - apesar de estar ERRADO quanto a um tanto de aspectos.
J: Digo de você a mesmíssima coisa. A questão é: o terreno de convivência esboçada aqui sobrevive ao mundo real dos que não estão com a morte no horizonte próximo? 
M: ... e mesmo nós: esse terreno de convivência sobrevive ao dia seguinte a 30 de outubro, quando um de nós terá seu candidato derrotado, e ou outro candidato eleito vencedor? 

Luzes se intensificam, entra em cena a enfermeira para os cuidados de praxe.
Black-out


ATO III - Frustração e raiva, Alívio e alegria, Vida que segue. 

Maximiliano e Jaime conseguiram fazer instalar um aparelho de TV na parede da sala de cuidados intensivos. Estamos às 20:30hs da noite do dia 30 de outubro de 2022. Num noticiário da TV, a voz de um locutor anuncia:

LOCUTOR: E Atenção! Boletim do Tribunal Superior Eleitoral acaba de ser divulgado, e informa acerca da conclusão da totalização da contagem dos votos válidos para presidência da república. Com a maioria destes votos, está eleito presidente da república... 

Luiz Inácio Lula da Silva

J: PORRAAAAA!!!!! 
M: Meus Deus, esse povo brasileiro vota como quem caga! Eleger um ladrão!!!!
J: Almirante, você sabe, primeiro, que ladrão por ladrão, o derrotado não fica a dever! Segundo, os julgamentos foram feitos por um juiz de merda. Terceiro, os demais que roubaram, foram enquadrados e cumprem pena. Então é. seguinte: Lula foi eleito, não foi? VAI ACEITAR?
M: Vou aguardar relatório da Defesa quanto às urnas. A depender disso, é o caso mesmo de aceitar, mesmo que muito a contragosto. Difícil ver, mais uma vez, que muitos nesse Brasil NÃO SABEM votar!!!! 
J: Vamos para nova etapa da história. Bolsonaro, você sabe disso, foi um péssimo militar que nunca inspirou vocês, e que vocês engoliram como mal menor. Mas mostrou-se um mal bem maior. Tenho a esperança de que poderemos reconstruir umas tantas coisas, tirar o Brasil da rota de apequenamento em que vinha.
M: Pra muitos de vocês também, Lula é um mal menor. Você sabe disso. Não me venha santificar esse sapo barbudo agora. Vamos retornar à esquerdização desse país, isso é o que mais me entristece. 
J. Não seremos nós que viveremos para ver, infelizmente! Tenho a firme esperança que caminharemos para o melhor. Não para o perfeito, somente para o melhor. Um Brasil democrático, justo, combativo e respeitável, acima de tudo. 
(Pausa)
M: Lamento não poder lhe dar os parabéns, não consigo, não tenho estômago para isso. Nem sei nem se o presidente Bolsonaro terá estômago para entregar a faixa. 
J: Essa é uma obrigação de estadista, não de pessoa A ou B. Mas ele não tem mesmo essa estatura. Quero somente que você respeite o jogo. Seria o que você quereria de mim, caso o resultado fosse outro - não seria?
M: Seria sim. Caso se confirme que tudo correu bem com as urnas, conte com ESSE meu respeito às regras do jogo, e não ao que ele produziu. 
J: Conte, de volta, com meu respeito, com alívio por certo, mas sem escárnio.

Jair Messias Bolsonaro
M: CARALHO!!!! 
J: Como é possível uma merda dessa? Como foi que deixamos isso acontecer? Eleger um genocida incompetente!
M: Foi eleito, não foi? Temos de aceitar e passar à etapa seguinte. ACABOU! 
J: Não acabou. O desastre somente continua. E se dependesse de mim, esse crápula não teria sossego. 
M: Trata-se do presidente eleito de seu país: RESPEITE!
J: Não merece respeito, nem antes, nem agora e nem nunca. 
M: Mas você não pregava o respeito às regras do jogo? Tem de aceitar, tem de respeitar...
J: Não proponho golpe, como o outro lado iria propor, se tivesse perdido. Proponho oposição ferrenha dos que ficarem, porque nesse tempo eu não vou mais estar aqui. Pelo menos essa merda me ajudou a aceitar a morte... 
M: Começa outra etapa da história. Tenho esperança de que, afastado o mal maior da ameaça comunista e do retorno de um governo de petralhas, vamos fazer melhor. 
J: Vamos de fato avançar no desmonte do estado democrático no Brasil. Com o aval do resultado dessa eleição, isso é o que mais me entristece. 
M: Não seremos nós que viveremos para ver, infelizmente. Tenho a firme esperança que caminharemos para o melhor. Não para o perfeito, somente para o melhor. Pátria acima de tudo, Deus acima de todos.
J:  Pobre do Brasil. Tomara que os que vão ficar aceitem que a luta continua. Brasil democrático, justo e combativo acima de tudo! 
(Pausa)
Lamento não poder lhe dar os parabéns que, em situação mais civilizada, seria o caso de dar. Além do mais, parabenizar quem quer que seja, nessa situação, seria quase imoral para mim. 
M: Quero somente que você respeite jogo. Seria o que você quereria de mim, caso o resultado fosse outro - não seria? 
J: Seria sim. Conte com o respeito que não sei se os seus correligionários de direita teriam a grandeza de oferecer. 
M: Conte, de volta, com meu respeito, com alívio por certo, mas sem escárnio.


[As luzes arrefecem completamente. Abre-se foco sobre o Cego Tirésias, em primeiro plano:]

Cego Tirésias: Pra quem não me conhece, sou o Cego Tirésias, em participação especial aqui, fugido do script da tregédia grega Antígona, de Sófocles. Não estou aqui para prenunciar qualquer tragédia - que todos os panteões de deuses história afora livrem vocês brasileiros disso! Venho aqui somente para cumprir a função de “comentador” e arauto, que as tragédias gregas brilhantemente inventaram. 

(O Cego Tirésias toma um copo d’água, trazido pela enfermeira da encenação, tempera a garganta, e continua). 

Cego Tirésias: Neste momento em que me dirijo a vocês, o ato III dessa pantomima ainda não se terá consumado. Mas seja ele qual for, TRÊS coisas podem ser ditas aqui e agora - até porque elas deverão ser ditas de novo tão logo o futuro vire presente. E as três persistirão válidas. 

PRIMEIRO: Nenhum país se define, se confirma e se limita a seus HERÓIS, e nem tampouco a seus VILÕES, BANDIDOS, ANTI-HERÓIS. Nem Bolsonaro nem Lula têm estofo para dar conta de todo o BRASIL. Não será por eles, apesar deles ou graças a eles que a história de vocês sofrerá inflexão decisiva. Cabe a vocês, povo brasileiro, costurar o futuro no tear da luta de todos e cada um.
(O Coro se manifesta):
Coro: Cabe a vocês, povo brasileiro, costurar o futuro no tear da luta de todos e cada um! 

SEGUNDO: a demonização de uns e de outros, vencedores ou perdedores, perdedores ou vencedores, somente servirá para dissipar uma energia preciosa, que vocês não terão como repor. Vocês, Jaimes e Maximilianos,  não precisam passar a se apreciar minimamente - basta que preservem o contexto de respeito a princípios que conseguiram esboçar. Não percam de vista que estão todos na mesma Nau Brasil. 
Coro: Não percam de vista que estão todos na mesma Nau Brasil!  

TERCEIRO: A noite desse dia histórico já se vai e surge um novo dia. Novo não tanto pelo tanto de esperança compartilhada - o dia nasce com um país dividido e às voltas com emoções díspares. Novo simplesmente porque abre um capítulo inédito (apesar das inevitáveis repetições) numa história que se escreve a todas as mãos, e que prossegue. 
Lembrem-se do que lhes falei no texto de Antígona: Doce é dar ouvidos a quem nos fala, se é para nosso proveito.  Que todos e todas se mostrem à altura do potencial desse país. Que esse potencial seja imenso! 
Coro: Doce é dar ouvidos a quem nos fala, se é para nosso proveito.  Que todos e todas se mostrem à altura do potencial desse país. Que esse potencial seja imenso! 


[Maximiliano e Jaime se erguem lentamente dos respectivos leitos, desconectam os sensores dos aparelhos de seus corpos, contornam o leito e, sem confraternização, apenas em paz, desaparecem no plano de fundo do ambiente de encenação. Começa a tocar canção de escolha do montador, a enfermeira entra, dançante, com cartaz de pedido de apoio à causa do piso salarial das enfermeiras brasileiras, no novo tempo que se anuncia. O samba decresce, a iluminação arrefece.]

FIM


Jorge Falcão
Natal (RN), em 22/10/2022.

Acerca das pesquisas de levantamento de opinião: da crença à compreensão

 “Para que se acredite em algo basta ter fé; para lidar com evidências, será preciso pensar para compreendê-las” (Prof. Dr. Samuel Mendonça, em “O risco de desqualificação dos institutos de pesquisa”, Folha de São Paulo, seção Tendências / Debates, pg A3, 05/10/2022.)

Na ressaca que se seguiu ao anúncio dos resultados das eleições brasileiras em 02 de outubro passado, muitos (à esquerda e à direita) urraram seu desalento, decepção e mesmo condenação em relação aos “erros de previsão” cometidos pelos principais institutos de pesquisa do país, cujos dados de levantamento divulgados teriam discrepado “vergonhosamente” do que efetivamente aconteceu. Houve até quem tivesse vaticinado que “os principais derrotados nestas eleições foram os institutos de pesquisa”, e outros, aproveitando a ocasião, já começam a nutrir espírito anti-pesquisas, ameaçando com um tempo em que “(...) não vão continuar fazendo pesquisa”. 

Precisamos recuperar alguns princípios básicos aqui, desde o objetivo central das pesquisas de levantamento, passando pela estrutura conceitual na base da teoria das probabilidades, e culminando com os tipos de erro que inexoravelmente acompanham o tipo de pesquisa a que nos referimos. 

Para o senso comum, as pesquisas aqui aludidas fazem previsão eleitoral - são bolas de cristal que servem inclusive, nas corridas de cavalo, para estabelecer rankings de favoritismo, e com isso, tabelas de pagamento de apostas, com os maiores prêmios para os “azarões”. Como todo bom apostador sabe, “lá de onde menos se espera, é de onde não sai nada mesmo”, só que isso não é inexorável, donde as “zebras”, os azarões que contraiam a as expectativas, vencem e fazem a felicidade daqueles que ganham 100 reais para cada real apostado - mais ou menos a relação estabelecida para as chances de vitória do referido azarão - 1 em 100. Retomemos o seguinte ponto: pesquisas buscam mapear intenções de voto, e não prever o comportamento de voto diante da urna - mesmo que se saiba haver relação entre ambos os fenômenos, só que com margem de erro; há sempre um efetivo variável de respondentes que dizem uma coisa, e pensam/fazem outra, pelas mais diversas razões. 

Falemos sobre esse famigerado erro. O termo de fato abarca três tipos diversos de fenômenos: i) há em primeiro lugar o erro decorrente da chamada variabilidade natural dos fenômenos; os manuais de introdução à estatística inferencial nunca deixam de aludir ao exemplo da moeda “honesta”- aquela com igual possibilidade de dar “cara” ou “coroa” em um determinado número de lançamentos. Mas na prática não é bem assim: em 10 lançamentos de uma moeda perfeitamente honesta, podem ocorrer 6 caras e 4 coroas (ou o inverso), 7 coroas e 3 caras, e até o esperado 5 caras e 5 coroas; a questão crucial passa a ser quando saber que a moeda deixou de traduzir a variabilidade intrínseca aos fenômenos e de fato é uma moeda viciada (esta é a missão precípua das ferramentas estatístico-inferenciais). Nessa mesma linha de raciocínio, se se extraiu de uma determinada população uma amostra, com todos os cuidados técnicos possíveis, e em seguida se repetem os procedimentos e se extrai outra amostra, seria de se esperar que essas amostras fossem muito próximas (em termos do fenômeno que representam), mas elas podem ser dramaticamente diferentes. Isso nos leva à questão do erro amostral: ii) amostras podem diferir em maior ou menor grau da população de que se originam, e podem diferir entre si; isso é absolutamente processual, possível, esperado, mesmo que de forma variável - e ainda não estamos falando aqui de problemas que poderiam/deveriam ter sido evitados, o que nos leva ao ponto seguinte: iii) amostras podem estar viesadas, comprometidas em sua estratificação: seria o caso, por exemplo, de uma amostra com percentagem proporcional elevado de participação de pessoas brancas para representar uma cidade sabidamente não-branca. Este comprometimento pode ter ocorrido acidentalmente, mas também de forma deliberada: aqui estamos no terreno da fraude. 

Não me consta que nenhum dos críticos tenha abertamente aludido a fraude deliberada por parte dos institutos de opinião - mesmo que, imagino, isso esteja no espírito de muitos, desde os desinformados até aqueles que, em postura clara de má fé, desejam mais uma vez desacreditar procedimentos rigorosos, simplesmente para substituir a análise crítica pela fé, conforme comentado pelo Prof. Samuel Mendonça, no texto que forneceu a epígrafe para as presentes reflexões. A ênfase no chamado “DataPovo” em contraposição ao “DataFolha” (um dos institutos de pesquisa no olho do atual furacão) trazem em seu bojo a estratégia da manipulação de informação em favor de posturas e crenças de uns e de outros. 

Se para os atuais críticos os institutos de sondagem de intenção de voto os erros verificados decorreram de incompetência técnica, é o caso de se proceder a exame crítico para localização das fontes de erro, revisão, aperfeiçoamento, e não há dolo aqui; mas se há suspeita de manipulação deliberada e fraudulenta, é o caso, sim, de chamar a polícia - não sem antes considerar que acusações devem ser provadas, e quando falsas, devem retornar contra os acusadores na forma de crime de calúnia e difamação. 

A metodologia (e respectivos métodos e técnicas) subjacente às pesquisas de levantamento de intenção de voto podem e devem passar por avaliação crítica. Num país com dados caducos quanto aos perfis de grupos humanos nos diversos municípios brasileiros, o grau de apuro técnico na estratificação das amostras pode estar comprometido. Por outro lado, as técnicas de coleta de informações, tanto nas situações estimuladas pela apresentação de listas de nomes quanto no caso das coletas não-estimuladas, podem passar por melhorias - foco de aprofundamento não cabível aqui, mas presente na literatura. O incremento da utilização suplementar de grupos focais para cruzamento de informações com dados de questionários traria um ganho importante para a qualidade global do dado coletado (observe-se aqui, por uma questão de justiça em relação aos institutos de pesquisa, que muita informação analítica, notadamente em termos de clusters de eleitores, não chega ao conhecimento do grande público). Não obstante, cabe reconhecer que todas essas inciativas demandariam energia, tempo e dinheiro, o que é inviável em contexto frenético de publicações semanais de pesquisas. 

Minha avaliação quanto ao valor e interesse das pesquisas aqui aludidas sobrevive incólume às tentativas atuais de desacreditá-las, mesmo que concorde que procedimentos técnico-científicos SEMPRE podem passar por aperfeiçoamentos. Estamos agora no tempo do segundo turno das eleições para presidente e, em alguns casos, governadores neste país, e espero que venham novas pesquisas, devidamente registradas nas instâncias de controle estabelecidas em lei, e com informações importantes para toda a sociedade. Tais pesquisas trarão em seu bojo as mesmas limitações acima aludidas, mas nem por isso deixarão de ter seu espaço e seu valor. Viva ciência, o pensamento crítico, a honestidade intelectual e moral, o livre acesso à informação.



A quem se destina a ereção de um imbrochável?

Eis que, em plena comemoração cívico-fálico-militar do 7 de setembro último, na capital desta república brasilis, em que se comemorava o bicentenário do grito da independência proferido pelo representante da realeza da qual dependíamos, no contexto, repito, de tal comemoração, um coro de [supostos] imbrocháveis é engrossado pelo [suposto] imbrochável-mor, e todos, efusivamente, em compartilhamento viril, entoam “imbrochável!” / “imbrochável!” / “imbrochável!". 

O Dr. Sigmund Freud aludiu, em seus escritos, a algumas vias de emergência de pulsões inconscientes no âmbito da consciência, como seria o caso dos sonhos, dos chamados atos falhos, e do chiste (como foi traduzido o termo alemão para o espanhol e para o português). O chiste, que podemos tratar aqui, mais coloquialmente, como a piada, o duplo sentido, a metáfora e a ironia, são indubitavelmente atravessados por energia psíquica visível na risada, e mesmo na gargalhada que frequentemente desencadeiam. O chiste seria portador, segundo Freud, de impulsos profundos e de sentido para aquém do valor de face. 

E aí o que presenciei pela TV, no episódio a que me referi acima, me fez lembrar uma piada de gosto duvidoso, mas que me pareceu abrir caminho para um melhor entendimento do coro entoado na festa cívica. Eis a piada: um cara, do tipo ex-imbrochável, descobre a ajuda farmacológica azul do Viagra, e eis que se lhe advém uma daquelas ereções dignas dos atores de filmes pornô; a pessoa com quem convivia, diante daquele evento erétil tão especial, se anima e pergunta ao cara protagonista se seria o caso de, imediatamente, tirar proveito... Eis então que o cara-protagonista responde prontamente que NÃO, de jeito nenhum - ele, ao invés disso, iria para a birosca da esquina, exibir orgulhosamente sua ereção para os parças! 

Isso nos remete à pergunta que abre essa tosca reflexão antropológico-psicanalítica. A imbrochabilidade aparece, na cena aludida, como um adereço de “viris” para “viris”, em última análise um “affaire d’hommes”, cujos destinatários são os parças, e não uma outra pessoa investida de afeto e/ou tesão real. A ênfase instrumental na ereção do/pelo imbrochável alude, tragicamente, a uma fixação fálico-narcísica que perde de vista a finalidade última da libido, que é o encontro de pessoas via compartilhamentos os mais variados - dentre os quais a penetração. Depois de orgulhosamente exibir aos parças o membro ereto como os canhões do desfile, tomara que cada um desses imbrocháveis evolua no sentido de descobrir, pós-infância psíquica tardia, com quantos [e quais] paus se faz uma canoa - para terminar em tom de chiste...

Round 6 como metáfora naturalizadora do Darwinismo Social contemporâneo

 Eis que surge no horizonte de debates de um de meus grupos web de cinéfilos o já blockbuster Round 6 (https://g.co/kgs/aGMJ3A), produção de outro fenômeno mundial em ascenção (thanks COVID-19), a Netflix. Vi o primeiro episódio e fiquei espantado com o caráter tóxico da proposta. Achei que, até para firmar uma posição minimamente informada, seria necessário pelo menos percorrer outro(s) episódios. No momento em que organizo essa reflexão para mim e para os que me derem o cabimento da leitura, estou lá por volta de pouco mais da metade da série de 9 episódios, mas acho que já basta. 

Desde logo asseguro que meu problema com a série não foi a quantidade de hemoglobina livre - eu que sou fã de Quentin Tarantino, onde artérias rompidas a golpes de katana by Hattori Hanzo jorram tanto sangue que as vezes o box doméstico de recepção de streaming precisa passar por uma hemoaspiração. Qual a questão, então? Vamos ao básico, ao central, ao crucial. Qual é o princípio basilar da CIVILIZAÇÃO que emerge com o Iluminismo, esse que busca apoio nas ideias de coletivo, comunidade, cidadania, coisa (res)pública, democracia, estado de direito, tudo desaguando nos direitos de cidadania? Esse princípio é aquele segundo o qual cada ser humano, por essa simples condição, tem o que alguns chamam de “direito natural” (não gosto do termo, mas vou resistir à tentação da digressão aqui), ou direito de cidadania (citoyenneté), ou direito humano de manter-se vivo, graças ao atendimento de necessidades inalienáveis como a alimentação, o alojamento, a educação, a saúde, a justiça. Associado a esse principio vem um outro que é crucial, e que até antecede o momento histórico do Iluminismo, pois remete à ideia de contrato social  que tem acompanhado a espécie humana desde que dois caçadores-coletores, graças à intermediação de algum sistema de representação linguageira, puderam combinar alguma coisa entre eles. Por esse princípio do contrato estabelecido, nossos ancestrais conseguiram certa economia de energia (além de algum aumento da expectativa de vida no grupo...) - o usufruto das águas de determinado riacho é compartilhado por dois grupos porque se combinou isso, sem necessidade de, a cada coleta de água, os envolvidos se engalfinharem para decidir quem finalmente levaria água para casa. Em decorrência, eu homem primitivo, passo a conseguir encher meu balde de água não por conta do meu muque, combinado à minha cara assustadora e meu tacape-tronco, e sim por conta de um acordo vigente! É claro que, aqui e ali, havia derrapagens, com retornos aos tacapes, cabeças partidas, baldes usurpados e muita gente morta, mas isso, ao longo da história, começou a se mover na direção de eventos de crise entre tempos de entente. Viva! 

Passamos por esse processo histórico civilizatório, mas o homem persiste o lobo de si próprio, não só em termos de recaídas tipo “meu tacape na tua cabeça” como ultima ratio, mas em termos mesmo da montagem de narrativas pretensamente elegantes, redigidas em gênero textual acadêmico, narrativas essas que solapam princípios civilizatórios baseados em princípios assentidos, assumidos, combinados e estabelecidos, em favor do ancestral princípio da lei do mais forte. A lei é igual para todos mas é “mais igual” para alguns; ser pobre se explica em função de uma “cultura da pobreza” e incompetência a ela relacionada; apenas os mais fortes sobrevivem (ou deveriam sobreviver...); óbito também é uma forma de alta médica (notadamente para idosos e outros pouco viáveis...) - essa é recente...; pessoas com necessidades especiais são um estorvo a evitar por parte do coletivo. Eis-nos diante do Darwinismo Social.
Não é caso de nos estendermos aqui sobre o próprio conceito de Darwinismo Social - ele próprio uma importação teórico-conceitual a partir da Biologia Evolucionária Darwinista rumo às ciências político-sociais, economia, ciências jurídicas e gestão pública. A conversa aqui era sobre o pretenso caráter tóxico da série Round 6, e meu Grilo Falante já me adverte que o texto já está bem grandinho... Por hora, que fique estabelecida a seguinte linha de raciocínio: tão violento quanto o comportamento da milícia de periferia, ou do grupo faccionado que administra (de fato) uma prisão do Estado, é a defesa do princípio segundo o qual determinados direitos se assentam em algum tipo de superioridade objetivamente estabelecida. Os racismos estão a um passo, naturalmente. As limpezas étnicas. A eugenia. O direito/dever de descartar os fracos para o bem de um grupo remanescente de fortes, portanto mais forte. O direito/dever de dar a toda e qualquer rationale contrária a esse princípio o caráter de mimimi, associado ao insuportável “politicamente correto”, atraso mental esquerdizante. Em suma: trata-se aqui do direito do mais forte como o direito natural por excelência - até porque encontra na própria natureza, em termos de uma de suas leis mais importantes (a Evolução das Espécies via seleção natural), o seu respaldo último. Eu tenho direito de dar um tiro na sua cara porque você é fraco, e por ser fraco, você perdeu.  

Bertolt Brecht, uma das referências maiores da dramaturgia contemporânea, chamava a atenção para o poder do teatro e da teatralização como fonte de “vivência psicossocial vicária” para a plateia - um faz de conta que nos proporciona um gozo real. Round 6 é tóxico porque oferece a experiência de distribuir tiros a rodo para aqueles que perdem. Porque a condição fundamental para permanecer vivo é ganhar - e não ter um tal de direito humano à vida, em si e por si. Os jogos notabilizados pela série (todos inocentes joguinhos de criança...) metaforizam os diversos desafios e demandas da vida, e desmetaforizam as situações em que nós, quando crianças, gritávamos para os amiguinhos e amiguinhas perdedores “VOCÊ MORREU!!!”. Na série, uma voz parecida com essas vozes de aeroportos e repartições públicas recita em idioma coreano, sem qualquer emoção, logo após o disparo de um tiro de revólver:  “candidato número x - eliminado” ...  

O cinema e o teatro são tóxicos na medida em que naturalizam situações que deveriam passar por crivo crítico, para o bem do Estado, para o bem dos indivíduos. O princípio segundo o qual only the strongest survive representam uma dessas situações, acompanhada inclusive da mensagem subliminar segundo a qual numa sociedade que passa numa imensa máquina de moer carne aqueles em dívida bancária, aqueles sem meios de consumo (desempregados), aqueles adoecidos e sem seguro-saúde, numa sociedade assim, a saída é “jogar”, mesmo em se tratando de um jogo em completa oposição em relação aos princípios mais básicos dessa tal de Civilização Contemporânea. Jogar, tudo considerado, é a saída conservadora, individualista e conformista por excelência. Um dos personagens diz, numa das cenas, logo no início: “Nesses jogos há pelo menos uma chance de ganhar alguma coisa, diferentemente do que se passa lá fora, em que não há esperança nenhuma”. Uma possibilidade de escape crítico dessa essa falsa dicotomia fica tão abstrata quanto a terceira margem de um rio. 

domingo, 13 de março de 2016

América Latina: qual a razão da pane?


Com esse título, o jornalista do Le Monde Renaud Lambert publicou reflexão de  grande qualidade sobre o momento de crise dos governos de esquerda na América Latina inteira, de Cuba até a Argentina, passando pela Venezuela, Bolívia e Brasil  (Amérique Latine, pourquoi la panne? – Le Monde Diplomatique, edição Janeiro-2016). Essa análise nos convém muito, a nós brasileiros, por três razões: primeiro, trata-se de uma visão de fora, útil nessa hora, em que se acirram aquelas tensões excessivamente atravessadas pelas emoções, que nascem e explodem nas redes familiares de WhatsApp, aqui no Facebook, nos contextos de trabalho, além dos ambientes mais clássicos de discussão, como as universidades e grande imprensa; segundo, porque traz elementos estruturais, inerentes aos demônios internos da própria esquerda, que ajudam a ampliar a discussão para além do contexto judicial-policial que tomou conta dos motes de todos os debates que estão postos – o que aliás é o fulcro da abordagem conservadora da grande imprensa no Brasil (a deliberada escolha da análise enquanto “caso de polícia”, com “xerifes” togados e pichulecos; aliás, Kim Kataguiri, golden boy dos movimentos pró-impeachment da presidenta Dilma, escreve hoje matéria de destaque na Folha de São Paulo com o grandiloquente título “Nossa geração sobreviveu”, em que assimila Lula a um dos vilões dos Power Rangers da infância dele... comovente... ); terceiro, porque traz um olhar que busca os invariantes à debacle atual da esquerda em toda a América Latina, resguardadas as especificidades de cada realidade nacional, mas sem perder de vista alguns pontos cruciais comuns e históricos – e quem não conhece bem a história, está condenado a repeti-la, como advertiu Edmund Burke (e Ernesto Che Guevara adotou como mote) há mais de 50 anos atrás. 
Minha opção pelo comentário, ao invés da tradução pura e simples, deveu-se a meu interesse em mudar o foco original de análise de Renaud Lambert da América Latina como um todo, para a análise do contexto brasileiro em primeiro plano, com a América Latina como pano de fundo. De toda forma, registro aqui o crédito dos pontos de análise ao autor do texto de referencia – é dele o mérito, é meu o risco.
Breve tour latino-americano proporcionado por Lambert em vários pontos de seu texto: (1) Um repórter uruguaio perguntou ao então presidente do Uruguai em final de mandato, José “Pepe” Mujica, por que razão seu governo não tinha conseguido levar mais longe as reformas que estavam em sua plataforma político-ideológica; com seu jeito despachado, Mujica respondeu, curto e grosso: “Porque as pessoas querem iPhones!”; (2) Nessa mesma linha, o embaixador da Venezuela na França,  Héctor Michel Mujica Ricardo, relata conversa com uma jovem mulher num bairro popular de Caracas, às vésperas da eleição presidencial venezuelana de 2013 – mulher que, segundo o embaixador, encarna uma das categorias sociais mais favorecidas pelas políticas redistributivas do  Chavismo; diz ela: “Antes, eu vivia na miséria. Foi graças a Chaves que eu consegui melhorar. Agora que não sou mais pobre, eu voto com a oposição.” (3) Bolívia, depoimento de um pequeno lavrador beneficiado pela política nacionalista e de valorização do pequeno agricultor lançada pelo presidente Evo Morales: “Agora que eu tenho dinheiro, eu posso tudo!” (4) Brasil: o cientista político Armando Boito, em análise acerca do enfraquecimento do MST, traz a seguinte explicação: os pequenos lavradores-sem terra que se beneficiam de uma gleba e que passam a ter alguma coisa a perder assumem imediatamente uma lógica e visão de vida cara a uma “sociedade de proprietários”, tão conservadora quanto aquela defendida pelos mais conservadores grandes proprietários da direita rural brasileira; isso evidencia que, ao lado do sucesso imediato de conseguir uma gleba via invasões, não se conseguiu mudar a mentalidade de todo aquele que recebe essa gleba, que doravante se vê como um “dono de terras”(mesmo que em miniatura...).
Para além dessas dinâmicas que se passam nas classes mais desfavorecidas, como é o caso da famosa “classe D de Lula” (aquela que ascende do lúpem-proletariado e consegue seus primeiros boletos, além de pela primeira vez enviar seus filhos à universidade pública), há que considerar importante processo no seio das classes médias. Agora há pouco, em 2015, nas vésperas da última eleição presidencial argentina, redes sociais consideradas progressistas divulgaram o documento “Os ciclos econômicos da Argentina”, que em meu entendimento são passíveis de apropriação, como ferramenta de reflexão, para a cena brasileira. Segundo a análise argentina, a história política daquele país estaria condenada a um ciclo vicioso com as quatro etapas seguintes:
[1] A direita assume o poder e destrói o poder de compra, as perspectivas e sonhos das classes médias.
[2] As classes médias pauperizadas ficam mais sensíveis às propostas progressistas, de resgate da cidadania, de reação aos vilões de direita que as pauperizaram,  passam a votar à esquerda, aliando-se aos bolsões do voto militante de esquerda, e conseguem eleger um governo de esquerda.
[3] Eleito, esse governo volta-se em primeira instância para os bolsões de pobreza, que ascendem socialmente em termos de consumo e inserção social, e beneficiam igualmente as classes superiores, tendo em vista o caráter reformista (e não revolucionário – o que de resto não é possível pela via de acesso ao poder através do canal democrático do voto); as oligarquias querem, contudo, recuperar sua hegemonia, pois sabem que governos de esquerda, mesmo na condição de aliados pela governabilidade, não são suficientemente  confiáveis.
[4] Inicia-se movimento político de reconquista do poder pelas oligarquias; as classes médias empoderadas identificam-se com o poder conservador de direita, e mesmo os “remediados” com up-grade recente para a classe D se tornam igualmente sensíveis ao discurso conservador. Esse dado estrutural pode ser circunstancialmente agravado por aspectos relacionados à corrupção no trato da governabilidade, e perspectiva de diminuição de direitos advindos da necessidade de reformas tributárias – notadamente aquelas ligadas à previdência e aposentadoria, por exemplo. A direita, nesse contexto, reconquista o poder, com ampla ajuda da classe média – fiel da balança que antes ajudou a eleger a esquerda, e que agora ajuda a eleger a direita, dando um tiro no pé representado pela retomada do ponto 1 do ciclo: as oligarquias, afinal, não têm compromisso com classes médias metidas a besta, mas estas, de forma sistemática e cíclica, demonstram amnésia histórica recorrente.
Estamos, nesse belo país, em pleno estágio 4, às vésperas do retorno ao estágio 1. Eu já vi esse filme antes, com gente de minha família marchando com Deus pela Pátria, Família, Tradição e um mínimo de perspectiva de comprar um carrinho melhor, depois todos orgulhosos de meter os peitos, junto com Fafá de Belém, e urrar pelas Diretas, depois eleger aquele que  antes chamavam de Sapo Barbudo, e agora lutar pelo aniquilamento completo de tudo que cheire a petismo, esquerda, lulas, dilmas e assemelhados, todos convencidos que fazem isso em prol da honra, da moral e dos bons costumes, esquecidos do atavismo maldito em que estão metidos desde sempre .
Como, justamente, quebrar esse ciclo atávico que condena não só o Brasil, mas TODA a América Latina, conforme argumenta e analisa Renaud Lambert? Como avançar efetivamente por vias que não explodam o Estado de Direito e dessa forma preservem a Democracia, e ao mesmo tempo permitam a construção de um estado efetivamente progressista? Claro está que a própria formulação da questão denuncia alguns pressupostos que me são caros – como a preservação de um status-quo republicano, democrático e plural que, para algumas perspectivas, JAMAIS permitiria passar do mero reformismo à revolução estrutural sem a qual nada poderia vir a quebrar o ciclo maldito acima. Prefiro as vicissitudes de erros e acertos desse velho e  inatingível ideal democrático às pretensões dos “centralismos democráticos” oriundos dos diktats de qualquer segmento ideológico do espectro – da extrema direita à extrema esquerda, passando pelos que juntam Deus, Diabo, política e governo.
Claro está que nem de longe consigo discernir resposta pronta e fechada para essa questão. Até porque problemas complexos não se resolvem com atos de fala que não estejam lastreados no dinamismo da ação política envolvendo indivíduos, coletivos, coletivos de coletivos, e História. Só isso. Mas formulá-la em termos menos simplórios me parece um primeiro avanço. Tudo o que tenho são vislumbres para navegação própria em tempos de mar revolto, de forma a ficar em paz com minha consciência e me poupar do risco de respostas singelas para questões idem (“Vai pra rua tal dia, em prol da luta contra a Corrupção, o Demônio e o Mal?” “Vai para a rua defender as verdadeiras causas populares?” Etc.).
Marx ensinou que uma forma produtiva de categorização dos protagonistas da cena social, econômica e histórica é aquela que os cinde em termos de proprietários dos meios de produção (o Capital em suas variadas formas), e proprietários da força de trabalho (aqueles que alugam esse insumo ao Capital). O interesse central dos primeiros é o lucro – o mais amplo possível; já o interesse central dos últimos é o salário – o mais “justo” possível (no limite inexorável imposto pelo princípio da mais valia).  Adoto essa categorização como minha e como absolutamente central como marco zero de uma série de análises. Usualmente essa cisão alimenta apelidos de famílias políticas, a mais popular delas sendo a clássica cisão nascida na Assembléia Francesa, a “direita” (“droite”) e “esquerda (“gauche”); digamos assim, numa perspectiva simplificada, que a direita costuma representar os interesses dos donos do Capital (que são naturalmente menos numerosos – donde outro qualificativo da direita – oligárquica (vide prefixo grego da palavra); e a esquerda, por sua vez, representaria grosso modo os interesses da massa trabalhadora locatária de sua força de trabalho. Há muito me convenci de duas coisas, um tanto anti-românticas: ser de direita ou de esquerda não pode ser facilmente assimilado a categorias como “bem” e “mal”, mas diz respeito a interesses inconciliáveis. Por outro lado, ter uma leitura do mundo em termos de esquerda e de direita não vem dado de presente em função da inserção do indivíduo num segmento abastado ou pobre da sociedade: ser pobre não é condição garantidora de ser de esquerda, conforme ilustram muito bem os depoimentos reproduzidos lá na abertura dessas reflexões. Ademais, o proprietário de uma singela facção de produção de vestuário no interior do nordeste brasileiro é tão proprietário quanto o dono (ou acionista principal) de uma fábrica de automóveis. Ambos terão uma relação estruturalmente semelhante com seus assalariados.
Direita e esquerda são portanto estruturalmente incompatíveis, o que não significa que não possam (e mesmo não devam) instituir alianças de governança. Pensemos numa fábrica “X” em um determinado contexto econômico: sua proteção e manutenção pode ser foco sinérgico de ações de um governo de aliança direita-esquerda, mesmo que no fundo cada pólo mire interesses diretos e até certo ponto (vide mais uma vez Marx) contraditórias: para os patrões, o lucro, para os trabalhadores, a manutenção dos postos de trabalho, e dos direitos que regem e balizam o estabelecimento do salário direto e vantagens associadas (como a aposentadoria, por exemplo). Se as alianças são possíveis e mesmo desejáveis, não é possível que a esquerda passe do estágio de governo com a direita para o estágio de governa para a esquerda (cf Lambert). Esse é um erro que a direita raramente comete, e que infelizmente ocorre seguidamente aos regimes de esquerda (o que caracterizaria o estágio três do ciclo proposto pelos argentinos, descrito acima). Lula advertia, em colóquio no Instituto Lula, proferido em 05/10/2015, que “cada vez que um partido de esquerda chega ao poder, ele se fragiliza.” É natural que ele se fragilize, porque ele tem diante de si uma tarefa tríplice: a) manter no curto e médio prazo a governabilidade, e no longo prazo o poder (uma longa saga de trocas de favores se insere aqui, desaguando na cena brasileira atual) ; b) manter um programa de esquerda, que vai muito além de proporcionar ao povo trabalhador meios para que cada um brinque de “ser bacana”, ser consumidor, jogar o mesmo jogo de sempre – conseguir mandar os filhos para a escola e para a saúde privadas, ao invés de algo mais além... ; c) manter a própria vida orgânica das entidades partidárias, cujos militantes de base agora disputam e perdem espaço para os companheiros que têm missões de governança (segundo Lambert, isso ocorreu de forma intensa tanto na Venezuela, quanto na Bolívia e no Brasil); a fragilização da militância, entenda-se, é fatal ao funcionamento de uma entidade política que se pretenda de esquerda, e essa fragilização costuma ser urdida historicamente pela própria dinâmica do partido de esquerda que sobe ao poder. É nesse contexto que os cientistas sociais argentinos Alana Moraes et Jean Tible (« ¿ Fin de fiesta en Brasil ? », Nueva Sociedad, no 259, Buenos Aires, septembre-octobre 2015) escrevem que hoje, no Brasil, « o PT se constitui muito mais em obstáculo [à uma ação política efetiva de esquerda] que em ferramenta.” Como disse Frei Beto ao se despedir do Planalto, de Lula e do engajamento na máquina de governo e poder, o PT havia se perdido de si mesmo ao subir a rampa do palácio presidencial. Nesse sentido, veja o leitor que a derrocada atual do PT, e, lamentavelmente, de uma proposta de esquerda para o Brasil, é alimentado e ampliado pela crônica policial dos intestinos do método de governança na qual o PT se lambuzou, mas o PT já havia urdido a crônica de sua morte anunciada muito antes disso – não só o PT, mas as organizações de esquerda em vários outros países que elegeram recentemente governos dessa tendência, e perdem as respectivas eleições uns após outros. O PT está hoje refém das ruas TAMBÉM pelos desmandos delituosos de seus quadros (de tesoureiros a presidentes – mas suspeito que deve ter sobrado um troco até para os faxineiros das sedes do partido – viva a inclusão social petista!). Mas o PT vai cair porque não soube estabelecer um projeto de governança que aliasse interesses variados do espectro direita-esquerda de interesses do Brasil, estabelecendo pontos de convergência e preservando papéis e compromissos históricos. Com isso o PT perdeu a classe média – esse grupo que vive sonhando num futuro sempre melhor para seus filhos – e vai perder a classe trabalhadora, quando os boletos começarem a ficar sem pagamento devido à perda dos empregos e respectivos  salários.  
Resta, por fim, aludir a como ficamos para os dias que virão. Poupo-me aqui do varejo das discussões sobre impeachment sim-não, renúncia sim-não, semipresidencialismo (a nova moda nas discussões), e por aí vai. Tudo o que diria é que é preciso quebrar o ciclo aludido pelos argentinos evitando a todo custo divulgar a ideia segundo a qual a saída, agora, deveria ser necessariamente conservadora – eleger a direita. Esse é um engodo cansativo, é por ele que se retoma o ciclo do rame-rame da história dessa sofrida América Latina. A proposta de esquerda continua de pé para todo aquele que se insira na condição de assalariado, mas também na condição de quem quer para o país um governo que tenha compromisso com uma maioria fragilizada, e não com uns poucos que assumem a posse dos meios de produção do país (a percentagem aliás desses protagonistas diminuiu bastante, em face da “política de esquerda” dos últimos três mandatos petistas). Não há perspectiva para a classe média fora da esquerda, pela simples razão desse segmento ser constituído, em sua maioria, por trabalhadores que possuem bens (até casas na praia e bons automóveis), mas não os meios de produção dos mesmos. Leões e cervos olham a savana a partir de pontos de vista sempre inconciliáveis, apesar de que,  tudo bem pesado, têm muitos interesses em comum (sempre a partir de perspectivas diversas).
A classe média brasileira está às vésperas de eleger um governo de direita no Brasil – posso sentir isso aqui nos posts de FaceBook e WhatsApp que explodem em meu smartphone enquanto escrevo. O velho ciclo tem grandes chances de retomar, até porque o PT está bastante ferido, e outros vetores de proposta de esquerda não têm musculatura para apanhar a bandeira e retomar a estrada. Freud escreveu, no contexto da economia psíquica e do trato dos sintomas neuróticos, que aquele que não entende seus sintomas está condenado a repeti-los. Sem drama e sem derrotismo, com determinação e paciência histórica, precisamos alimentar narrativas, argumentações e discussões que preservem a autocrítica das propostas chamadas “progressistas”, de esquerda – progressistas porque são as únicas compromissadas com o resgate dos mais frágeis, com a correção das injustiças do Darwinismo social que o Capitalismo é pródigo em gerar. Votar na direita, nesse contexto, permito-me dizer (apesar das pedradas que acarretará), é algo absolutamente pertinente para quem se alinha do lado da oligarquia dos proprietários; no caso dos demais, trata-se de equívoco que oscila entre a burrice e a ingenuidade, a depender de cada caso. Trabalhar com a direita, sim (eventualmente); trabalhar para a direita, jamais. Esse é o espírito que quero compartilhar e disseminar para os dias que virão. Como isso vai se traduzir em termos do concreto mais concreto – direções, partidos, candidaturas – vai depender de quem continuará solto ou preso, elegível ou inelegível, vinculado a qual sigla partidária, inserido em qual narrativa biográfica. Fundamental será a oferta e manutenção de uma proposta de esquerda – com todas as dificuldades de se conseguir uma, atualmente; sabendo-se que a alternativa à direita não é alternativa para muitos – grupo em que me insiro – é pura neurose política, para dizê-lo da forma suave dos psicólogos...

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Quando a vida começa? Quando a vida termina?


Ano que vem, cinquenta, idade em que tem início a decadência do homem.”

Dráuzio Varela narra ter ouvido essa frase de um conhecido de priscas eras, desses que a gente encontra no meio do mundo, custa a reconhecer, luta para se desvencilhar, e ainda tem de aguentar pérolas de sabedoria e generosidade como essas. Tal narrativa vem na Parte 1 de seu mais recente livro, “Correr”, parte intitulada “A largada, ou a vida começa aos cinquenta”. Dráuzio comenta o quão impactante foi para ele ouvir aquela mesquinharia; e o quanto a frase tocou num daqueles pontos nevrálgicos da alma, um daqueles que só constatamos mesmo que temos depois que ele é devidamente cutucado. A frase o fez reagir energicamente – não para se contrapor ao pobre idiota que retornou às brumas do passado, mas para reagir à própria instância interna de auto-sabotagem com a qual havia convivido até então.
Sedentário, estressado, com padrão de  vida profissional daquele tipo para o qual o trabalho não cessa nunca – tantas são as tarefas a cumprir, tantas são as que não se consegue cumprir, invadindo as noites e inviabilizando o sono (conheço essa história de algum lugar). Dráuzio não explica muito bem, mas a forma que encontrou para reagir àquela sentença mesquinha foi...correr! Correr, entenda-se bem, não aquelas corridinhas michas uma vez na vida outra vez na morte – correr maratonas! 42km!
Por coincidência, cismei do juízo uns tempos atrás de começar a caminhar, depois trotar, para um dia correr um percurso todo. Nesse clima, ouvi referências ao livro de Dráuzio, e resolvi comprar o eBook para ler no avião, no percurso que me levou de Natal a Lyon (França), para jornada de trabalho intensa em janeiro de 2016. Minha expectativa era que iria ler esse livro no mesmo registro em que li, décadas atrás, o best-seller acerca do “Método Cooper”, lançado pelo médico norte-americano Kenneth Cooper. Lá no íntimo suspeitava que o livro de Dráuzio Varela seria mais interessante que as páginas monótonas do livro do Dr. Cooper – depois da 10a página, a lenga-lenga torna-se insuportável... Dráuzio, por sua vez, havia escrito anteriormente o “Estação Carandiru” – narrativa de excelente qualidade, livro que lhe pega, lhe dá uma surra e não lhe larga até você conseguir a alforria da última página. Meu íntimo estava certo...
Mal ultrapassei as primeiras páginas, percebi que o registro em que leria “Correr” estava mais próximo do registro em que li um livro que fez minha cabeça também décadas antes, “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”, do norte-americano Robert Pirsig. Sendo que dessa vez, a motocicleta seria eu mesmo – a velha carcaça de quase 60 mil km com que venho percorrendo a vida.
Após a frase mesquinha do conhecido no fatídico encontro, Dráuzio se (com)prometeu, cumpriu e virou maratonista. Começou vida nova e “carreira” de maratonista aos cinquenta anos, e hoje, aos setenta, continua lépido, fagueiro e maratonista militante – haja vista o texto que produziu. Nesse texto, mais do que a apologia (difícil de aturar depois de dois parágrafos) do “get physical”, Dráuzio lança digressões sobre o lado metafórico do correr, o quanto isso serve para chegar ao equilíbrio-zen para o qual Pirsig havia eleito o cuidado dos pistões da velha motocicleta como caminho da Iluminação e da Harmonia. Chama ainda a atenção para a questão crucial do quando começa, quando termina a vida. No fecho do livro comenta abertamente que, aos setenta anos, sabe que não lhe resta muito tempo pela frente – não que esteja doente, está ótimo, não faz uso continuado de nenhum medicamento (avis rara em sua geração), e continua treinando para correr suas duas maratonas anuais (às quais tem acesso garantido por estar sempre no limiar dos cinco segundos a menos que o tempo de corte de sua faixa etária, tempo esse registrado em corrida oficial anterior). Ao mesmo tempo que não tem ilusões sobre continuar correndo maratonas ad eterno, constata o quanto vive bem hoje, depois que a disciplina da preparação de cada maratona, e o esforço de corrê-las (competindo contra o próprio limite de esgotamento), fizeram dele um homem melhor.
Eu, de minha parte, não tenho absolutamente o interesse de correr uma maratona; minha ambição nesse domínio é muitíssimo mais humilde. Mas compartilho a motivação de me tornar um homem melhor. Um homem mais sereno, mais harmônico com seus próprios chakras, mais harmônico com a vida e com a vibração para além do chiqueirinho. Entendo perfeitamente a metáfora zen que é correr para Dráuzio Varela; entendo que haja tantas outras ao alcance; e entendo que convém a cada um achar a sua. Iniciar uma vida por dentro da vida – não no sentido de nenhuma mudança espetacular e espetaculosa – somente o avanço, mínimo que seja, em direção à Iluminação que é tão cara a alguns mestres, e tão distante da realidade de tantos que nos cercam, de nossos próprios desatinos e desequilíbrios. Tudo passa, tudo flui, inclusive a vida que é dado a cada um viver – salvo que é sempre possível buscar formas melhores de navegar nesse curso d’água que é a vida. Meio óbvio, mas de repente tão prenhe de sentido...

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

APRENDIZAGENS: em honra aos 60 anos do Instituto Capibaribe


O que pretendo trazer aqui à consideração de vocês, nessa mesa, resulta da conversa interna entre um conceito central em minha vida de pesquisador que pensa e pesquisa sobre aprendizagem, o conceito vygotskiano de vivência, tradução dificultosa do termo russo perezhvanie,  e tudo que pude aprender sobre aprender, no tempo do Instituto Capibaribe. São vivências que quero compartilhar aqui, com vocês. Continuo uma conversa que iniciei já há 10 anos atrás, quando da edição do livro comemorativo dos 50 anos do IC, para o qual tive a honra de contribuir com depoimento escrito. Essa conversa interna me constituiu e constitui todo o tempo, e foi em função dessa conversa que dediquei meu trabalho inicial de tese, em meu Diploma de Estudos Aprofundados, na Universidade de Paris 5, a Raquel Correa de Crasto. Meu orientador, à época, perguntou, curioso quem era aquela pessoa; eu respondi, misterioso, que havia sido uma antecessora dele... Ele até hoje deve imaginar trata-se de alguma acadêmica brasileira, em algum mestrado prévio... Mal sabia que a dimensão dessa antecessora havia sido muitíssimo maior! A lembrança e homenagem a Dona Raquel não havia sido por acaso; ao iniciar o doutorado, me senti perigosamente ameaçado por um contexto que não conhecia, uma língua que não era a minha, um desafio que parecia enorme; naquela ocasião, mesmo as máquinas de lavar roupa de aluguel, na residência universitária onde residi na chegada, pareciam dispositivos inextricáveis e complicadíssimos, que me faziam pensar, desolado: “alguém que não consegue sequer lavar as próprias roupas sujas numa porcaria de uma máquina de lavar, como poderá fazer um doutorado, ainda mais em língua francesa?” Vivência que já era minha conhecida:  anos atrás, na chegada ao Capibaribe, vindo de experiência escolar absolutamente desastrosa, analfabeto quando todos já haviam aprendido a ler, estrangeiro num mundo adulto distante, marginal num mundo infantil hostil, aquela escola da Avenida Malaquias parecia mais uma comarca inatingível de um país de frustração e desamparo que se constituía para mim. Na chegada à Sorbonne, uma secretária cinza me havia advertido que, naquela universidade, não se faziam favores a estrangeiros;  na chegada ao IC,  os coleguinhas me saudaram com a advertência de que naquela escola todos deveriam fazer primeira comunhão, mas analfabetos estavam fora – destinados ao inferno por conta de sua incompetência ignara e pecadora.  Em Paris, logo após o choque das primeiras experiências assustadoras, uma voz tranquila enraizada em vivências do passado sussurrou ao meu ouvido que o desafio, ali, como das outras vezes, seria sobretudo encontrar o meu próprio caminho para aquela trilha: nem se submeter aos projetos de outros, nem sucumbir ao vazio do vácuo de qualquer projeto.  Como na Avenida Malaquias, onde a Dona da Voz sussurrou ao meu ouvido o convite inesperado para acompanhá-la na preparação do jornalzinho da escola – jornalzinho que tinha um patrono - São Domingos Sávio (discípulo de São João Bosco) – sobre quem, um dia, eu poderia ler, quando pudesse ler, e se quisesse saber; enquanto isso, iríamos produzir textos escritos... em deliciosos mimeógrafos a álcool. Assim se iniciou minha trajetória de apego ao texto escrito no Instituto Capibaribe: da forma como pude iniciá-la, como auxiliar de produção de texto mimeografado cujo significado cifrado desconhecia, mas em meio à magia de se apaixonar por um jornalzinho escolar mesmo antes de entender uma mísera linha do que ali se escrevia. Em Paris, exatos 365 dias após a chegada assustadora, texto de exame pronto, caminho pessoal iniciado, dedicatória a Raquel inserida, voltei aos 365 dias após a chegada ao IC, então na condição de diretor de edição do jornalzinho, e sob a proteção de Domingos Sávio e de Dona Raquel. O quão bem produzia e consumia texto, não sabia e hoje não me recordo: tudo que recordo foi o quanto foi tardio – último dos meninos de minha turma a se alfabetizar, ritmo próprio nesse processo, analfabeto inclusive durante a primeira comunhão – Dona Raquel me havia tranquilizado, rindo à solta da tentativa de bullying dos coleguinhas que me haviam garantido que o padre iria me pedir para abrir o missal à página x, e ler o que estava lá – se não lesse, nada de óstia e nem de primeira comunhão! Conforme Dona Raquel havia assegurado, todos comungaram, apesar de só um menino magrinho, dentre todos, ter comungado feliz, e analfabeto. A defesa do texto de exame em Paris, que os coleguinhas haviam preconizado como de difícil sucesso mesmo para os nativos  - melhor pedir logo para fazer o exame ao final do segundo ano – me parecia possível, porque havia aprendido antes que um caminho era sempre possível de trilhar quando o caminho era o seu; e que aquela óstia de primeira comunhão doutoral estaria sim a meu alcance, primeiro porque eu a queria muito, e segundo porque eu iria encarar aquela empreitada do meu jeito, e sob a égide de Domingos Sávio e Raquel. Meu privilégio...
Vivência, para Lev Vygotski, diz respeito à experiência acumulada do vivido, peculiar a cada um e necessariamente atravessada por acervo de emoções e afetos. Vivência, para mim, é a unidade de análise da psicologia, qualquer que seja o adjetivo que a acompanha: do desenvolvimento, do trabalho, da aprendizagem. Vivência diz respeito à integração biográfica entre passado, presente e futuro, e à integração entre racionalidade e afetividade. Aprender é fundamental, mas aprender, como vivência, traz sempre em si, embutida, a meta-experiência de aprender a aprender. Tal experiência tem como cerne a competência, discutida pelo Círculo Bakhtin em termos de estilização, no sentido de construir um caminho próprio. Aprendi com Raquel o apego afetuoso ao texto escrito através do enfeitiçamento da pequena oficina na labuta do mimeógrafo a álcool – em meio à tranquilidade, ao respeito, ao carinho por um garotinho desvalido e em risco – fora dos padrões, mas pronto a se apegar – à escola, ao aprender, ao assumir o direito de fazer valer sua diferença, viver com ela, e não apesar dela. Vygotski, ao refletir sobre crianças diferentes, ou “feitas de outra maneira” – portanto caracterizadas por um defectus – donde a Defectologia russa, chama a atenção para o fato de que elas são crianças tão humanas quanto qualquer outra, apesar de portarem peculiaridades como poucas, e olhando de perto, como nenhuma outra. Raquel sabia “querer bem a todos, querendo o bem de todos”(pg. 25 dos Cinquenta Anos Depois), e sobretudo “respeitar o estilo e o arranjo pessoal” (pg. 27), convicta da importância dessa postura para formar pessoas integrais, ao invés de formatar ovelhas – eventualmente enviando-as direto para o abatedouro. Escrevi em meu texto de 2005 que o Capibaribe sempre soube acolher patinhos feios, e não necessariamente para transformá-los em cisnes (apesar de alguns, efetivamente, terem desenvolvido belas plumagens), mas para oferecer a cada um deles um laguinho onde fosse possível nadar, onde fosse possível se afeiçoar a nadar: eis aí o cerne das vivências de quem passou por essa escola tão pequena em valor material, tão especial na escala inefável que avalia as vivências.
Sempre me assombrou, pela vida afora, a constatação retrospectiva de uma certa familiaridade vivencial de Dona Raquel, com construtos teóricos do estado da arte da teorização em psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, minha área de formação doutoral. De Jean Piaget a Emilia Ferreiro, passando por Anita Paes Barreto e Paulo Freire, de Lev Vygotski a Jerome Bruner, passando por Mikhail Bakhtin e seu círculo de colaboradores. Mais de uma vez conversei sobre esse meu assombro com o prof Paulo Rosas, um dos meus formadores na Psicologia UFPE, a quem aproveito para igualmente reverenciar aqui. Recentemente, em evento acadêmico em Paris, um dos conferencistas, Pablo Del Rio,  disse uma frase que imediatamente me trouxe Dona Raquel; ele disse: “há pessoas que falam como livros, há livros que falam como pessoas, e há pessoas que trazem a sabedoria dos livros em seu discurso e em sua prática profissional, mesmo que não citem os livros, e mesmo que, misteriosamente, nem sequer os tenham lido.” Lembraram de alguém?
Para além da ênfase absolutamente contemporânea na integração dos aspectos cognitivos e afetivos nos contextos de ensino e aprendizagem (tema aliás de uma fala que ofereci ao professorado do Instituto Capibaribe em 2004, a convite da direção pedagógica), numa época em que muitas correntes de peso da psicologia e da pedagogia tratavam esses aspectos como separáveis, e da ênfase no respeito às peculiaridades dos alunos, não para lhes conceder privilégios especiais na comunidade-escola, mas lhes respeitar direitos inalienáveis, Dona Raquel trouxe igualmente contribuições específicas na lide com os conteúdos escolares específicos – isso com que até hoje lutamos, ao propor, primeiro, os Parâmetros Curriculares Nacionais, e agora a Base Nacional Comum Curricular. O que digo sobre isso, digo não com base na leitura de textos de orientação de Raquel, apesar de ter visitado os bastidores desse mundo em que fui aluno, ao ler as anotações do 50 Anos Depois... Digo com base, mais uma vez, na vivência de quem passou quase um ano sacrificando os domingos de praia para ir à casa humilde e acolhedora de Dona Raquel, no bairro de Campo Grande, para aulas suplementares de Português e Matemática, em preparação para um futuro chamado Ginásio de Aplicação (mais histórias, mais vivências...). Mais uma vez, como tantas vezes, a avaliação pessoal era de completa impotência para conseguir acesso àquele colégio de nerds – logo eu, até bom em Português, mas definitivamente problemático no domínio das Matemáticas – como ter essa pretensão? Raquel acolheu essa postura com um ponche de laranja – lembram que em nossa infância tomávamos ponche? Ponche de laranja com bolacha cream-cracker – o lanche que acompanhou, em sua simplicidade franciscana, todo aquele período de formação suplementar. Ponche e aquele jeito Raquel de ser – la force tranquille, como diriam os franceses. Aquela certeza de que, mais uma vez, haveríamos de construir um caminho, o meu caminho. Certa vez, numa das jornadas dominicais de Campo Grande, diante de uma expressão numérica aterradora (chamávamos de “carroção”), com barra fracionária, parênteses, chaves e colchetes e tudo o mais que se pudesse imaginar, e que eu deveria simplificar, olhei desamparado para Dona Raquel, e aí ela me segredou uma fórmula que me acompanhou muitos anos depois, em minhas pesquisas já no domínio da resolução de problemas e da passagem da aritmética à álgebra: “esses problemas são como papa, a gente começa comendo pelas bordas...” Mais tarde ouvi o russo naturalizado americano George Polya discorrer em “How to Solve It” sobre a sofisticação da estratégia do “means and ends analysis” , que vem a ser justamente comer um problema complexo (matemático, econômico, existencial...) pelas bordas – o que tem a estratégica característica de não garantir que o problema seja resolvido de uma tacada – ele lhe leva a um problema cada vez menor, somente isso; e de menor em menor, ele fica do meu tamanho – Eureka!
O que cada aluno dessa escola toda vida lembrará, com base nas vivências fundadoras de cada um no Instituto Capibaribe, é que aprender é bom, é prazeroso e é autoral; aprender é trazer para si e reinventar, aprender é receber os tesouros dos que nos precederam, e dar a esses tesouros o valor adicional do estilo pessoal; valor adicional que não tem necessariamente medida clara e objetiva, na direção do desempenho, do achievement tão caro a certas perspectivas anglófonas de educação; já na condição de pai de aluno do IC, quantas e quantas vezes ouvi em nossas reuniões de pais e mestres a pergunta angustiada de outros pais: “aqui nessa escola meu filho até está indo até bem, ele gosta da escola e tudo, mas ele vai conseguir se dar bem lá fora, noutras escolas, quando sair daqui? Ele estará equipado para a  vida real, fora desse jardim protegido?” O IC gerou um paradigma em Recife, e mesmo fora de Recife: meus filhos pequenos frequentam em Natal, onde hoje residimos, uma escola que é a “cara” do IC, e que atende pelo sugestivo nome de “Casa Escola” – sentiram o clima? Pois muito bem, a pergunta permanece, tantos anos depois... Os pais vêem os filhos felizes na escola, lembram do tanto de porrada que levaram em suas experiências escolares, e se perguntam, fiéis à tradição judaico-cristã de progresso via penitência: “é possível atingir o bom desempenho sem sofrência escolar? ”  Eu, do meu canto, pela enésima vez respondo que basta dar uma olhadinha nos egressos... Sem grandes circunlóquios sobre o valor da perspectiva construtivista, etc e tal. Olhem os egressos...
O que os egressos do Instituto Capibaribe, hoje com filhos, netos, bisnetos, e vamos que vamos, o que esses egressos toda vida lembrarão é de uma etapa da vida em que se consolidaram como pessoas. Aqueles dentre os egressos que se encaminharam para as lides pedagógicas levarão um acervo de vivências focadas no rigor, na seriedade profissional do ser mestre, no estudo constante, no carinho imenso ao ofício e ao educando. E mesmo aqueles que, mais prosaicamente, admitam não ter histórias muito especiais a contar, esses também se juntarão a todos os demais, posto que todos têm seu lugar nessa foto, todos tiveram o privilégio de compartilhar a vivência de uma escola que para sempre em nossas almas ficará.
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ADENDO acrescentado após ver o vídeo produzido para a apresentação, como parte do programa, na emocionante cerimônia do Teatro Beberibe, em que uma das depoentes, ex-aluna do IC, lembrava um dos motes da escola: “Aqui a gente pode tudo...”. Isso me trouxe mais uma vivência, que compartilho abaixo.
Clinica Pinel, véspera de Natal de 1980. Eu no plantão, co-responsável pela Unidade Freud de mais ou menos 50 pacientes do sexo masculino,  a maior parte psicóticos, e com baixa dosagem média de medicação, como era a tradição na clínica. Por volta das 21hs sou chamado à unidade, um paciente que me ver.
Eu: Olá, gostaria de falar comigo?
Ele: Sim, gostaria. Aqui nessa clínica vocês dizem que a gente tem ampla liberdade, mas a gente não pode nada.
Eu: E o que você gostaria muito nesse momento?
Ele: O que gostaria muito, nem vou falar, pois sei que não haveria a menor possibilidade de ser atendido. Vou falar somente o que gostaria, assim, de boa.
Eu: Diga!
Ele: Gostaria de que hoje a regra do silêncio das 22hs fosse suspensa, e que a gente tivesse direito a um recital de música sacra com o primeiro violino da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.
Eu: Vamos consultar os demais pacientes – se eles concordarem, eu vou autorizar. Quanto ao recital... Como fazer para conseguir o violinista?
Ele: Fácil, sou eu.
Eu: [pensamento paralelo: acionar princípio técnico de como lidar com delírios; não escarnecer, não confrontar – aceitar sem se associar ao delírio, etc...] – Vamos ver... Primeiro vamos tratar da aceitação de sua proposta pelos demais pacientes... [Ganhar tempo...]
20 minutos depois, pacientes todos de acordo, volto à unidade para tratar do encaminhamento da produção delirante, e ao comunicar ao meu interlocutor que a primeira parte da demanda estava contemplada, ele vai a seu armário, retira um violino, senta-se com todos os pacientes ao redor, e inicia uma belíssima sonata de Natal, em meio a muita emoção. Nem precisei conferir depois (mas confesso que o fiz) que ele era, efetivamente, o primeiro-violino da Sinfônica de Porto Alegre.
Ao final da noitada, todos se recolhendo, ele me diz: O senhor sabe, nessa vida, em canto nenhum a gente pode tudo; mas a gente pode muito quando há boa vontade e boa conversa!
Era sempre assim no Instituto Capibaribe: a gente de fato não podia tudo, mas a gente conversava tudo e sempre - e findava podendo muito!